Fonte: Blog A Terra da Liberdade
(União dos Palmares (AL), 16 de junho de 1917 - União dos Palmares (AL), 28 de fevereiro de 1993)
Natural da terra de Zumbi e Jorge de Lima, a educadora, folclorista, historiadora, jornalista, colecionadora e ativista cultural Maria Mariá de Castro Sarmento nasceu nos arredores da cidade de União dos Palmares, num povoado onde se localiza a Usina Laginha, no dia 16 de junho de 1917.
Seu pai foi o tabelião da cidade, Sílvio de Mendonça Sarmento, e sua mãe, Dona Ernestina de Castro Sarmento. Dessa união nasceram - além de Mariá - Maria Luísa, Paulo, José Sílvio, Luís e Maria Sílvia. Orgulhosa de seu nome de família – de Castro Sarmento – herança que remonta do tio-bisavô Coronel Basiliano Olíbio de Mendonça Sarmento (grande latifundiário da região, viveu de 1846 a 1931) e do avô paterno, o coronel Salustiano Tavares de Mendonça Sarmento, preservava com zelo e respeito o legado que recebera, considerando necessário perpetuar esse nome como uma tradição local e uma forte herança política, social e cultural da cidade palmarina.
Fez os primeiros estudos em União dos Palmares, no tradicional Grupo Escolar Rocha Cavalcanti e, em seguida, foi para Maceió completar a sua formação, cursando a escola Normal. É fato que nos idos de 1930 a possibilidade de as mulheres estudarem ainda é muito pequena; de maneira que sair da cidade natal para freqüentar uma escola – o curso de formação de professora primária era o que condizia às mulheres – fora dos domínios paternos significava um grande avanço para os costumes locais, o que já distingue Mariá das suas contemporâneas.
Autodidata, amplia seus conhecimentos em vários sentidos, passando a colecionar e a ler avidamente tudo o que lhe chega às mãos como revistas, jornais, o periódico Seleções e, principalmente, lendo e relendo inúmeras vezes escritores como os russos Tolstoi e Dostoievski, os franceses De Saint Exupéry e Emile Zola, os portugueses Camões, Eça de Queirós e Florbela Espanca e os brasileiros Machado de Assis, Érico Veríssimo, Jorge Amado, José de Alencar e Monteiro Lobato, entre vários outros.
A partir de então, torna-se uma referência como professora e como detentora da cultura local. Era comum ser solicitada para redigir discursos, falar em público e resolver dúvidas de gramática. Com essa prática, recebeu na cidade a alcunha de “dicionário ambulante”, epíteto que a envaidecia a ponto de dizer que não trocava sua escola normal por nenhum curso superior. Muito mais tarde, em 1960, em vista do seu permanente desejo de ampliação de conhecimento, conclui o curso técnico de contabilidade.
A vida profissional de Maria Mariá se inicia em janeiro de 1943, quando é nomeada professora estadual das primeiras letras, indo exercer a função inicialmente como estagiária no povoado da Fazenda de Santo Antônio, nos arredores de União dos Palmares. Para sua alegria, em 1944, findo o estágio probatório, é transferida para o Grupo Escolar Rocha Cavalcanti, a velha escola onde recebera os primeiros ensinamentos.
Nessa escola, Mariá implanta várias modificações: primeiro aboliu o uso da palmatória, que identificava como "um instrumento de tortura"; e segundo, não achava necessário que os alunos, para irem ao banheiro, tivessem que apresentar uma pequena pedra que servia de controle para o professor só liberar a saída de um aluno com o retorno do outro. Mariá via essa prática como mais uma forma de repressão ao comportamento juvenil.
Em 1955, é nomeada diretora titular do Grupo Escolar Jorge de Lima e, no ano seguinte, também vai ministrar aulas de gramática no Ginásio Santa Maria Madalena, instituição pertencente à rede particular da Campanha de Escolas da Comunidade - CNEC.
Além dessas atividades docentes, em 26 de fevereiro de 1963 é designada para exercer a função gratificada de inspetora regional da 7ª inspetoria. Essa experiência faz com que tenha uma visão mais ampla do problema da educação no Estado de Alagoas. Mesmo exercendo uma função gratificada, Mariá se revolta com o descaso com que o ensino era tratado, com prédios sucateados, carência de professores, material de ensino inexistente e, principalmente, a falta de compromisso das autoridades com a escola pública.
Felizmente, medo era um sentimento que Mariá parecia desconhecer. Assim, mesmo sabendo que o seu cargo de Inspetora de Ensino era uma função de confiança, torna pública sua insatisfação redigindo, de forma contundente, uma carta aberta ao então Diretor da Educação do Estado, que sai publicada no jornal Gazeta de Alagoas, em 28/04/63, sem se preocupar com represálias, tais como perda da função ou qualquer outra perseguição política.
Um outro artigo publicado na Gazeta de Alagoas, em maio de 1957, merece destaque. Dessa vez, o alvo é uma parcela da comunidade palmarina que ela considera inculta, preguiçosa e iletrada e que, por não ter o devido alcance do fato, reclama da criação de uma Escola Técnica de Comércio na cidade. Resolve, então, Mariá "puxar a orelha" desses "respeitáveis senhores espíritos de porco", escrevendo umas "Palavras de agradecimento" aos idealizadores do projeto, como padre Teófanes e o vigário padre Clóvis Duarte de Barros, entre outros.
Vários outros artigos, cartas, comentários sobre assuntos diversos de interesse da região e, especialmente, de União dos Palmares aparecem na imprensa local. Graças a essa escrita assídua e permanente, Mariá recebe em 17 de dezembro de 1965, o credenciamento como jornalista, pela Associação Alagoana de Imprensa, com o registro de número 218.
Algumas atitudes de Maria Mariá transformaram-na em uma lenda em União dos Palmares. Foi a primeira mulher na cidade a usar calça comprida (“vestia-se como um homem”, expressão de seus contemporâneos), a disputar jogo de sinuca, dominó, baralhos e gamão com os homens da cidade, “esportes” considerados pela comunidade local como de exclusividade masculina.
Mesmo não possuindo um companheiro, a sua solteirice (nos anos 50/60, ser solteira significava uma exclusão que relegava a mulher a permanecer em casa, cuidando dos pais e dos sobrinhos) não a impedia de vivenciar o mundo boêmio da sua alma inquieta e festeira. Pairando acima dessas questões, que considerava preconceituosas e pedantes, Mariá fumava em público, tocava violão, bebia nos bares e botecos, promovia vaquejada, incentivava a criação de blocos carnavalescos e, inclusive, com seu irmão Paulo, participava de um deles - "O Bando de Lampião" - fantasiada de Maria Bonita.
O mais curioso é o respeito que a sua figura humana impunha: fosse nos botecos ou nas grandes festas sociais da cidade, era tratada como uma mulher de coragem e cultura e, especialmente, como uma mulher que sintetizava a garra da terra de Zumbi dos Palmares.
Dessa forma, Mariá não somente participou, mas, principalmente, organizou vários eventos culturais em União dos Palmares como: a 1ª Festa da Mocidade, o Grupo Dramático de Atores Amadores, festas de formatura, organização de bingos beneficentes, a fundação da Biblioteca Pública Municipal Jorge de Lima, sendo a primeira bibliotecária do município, participou da organização dos festejos de inauguração da iluminação pública da cidade, lutou bravamente pelo tombamento da Serra da Barriga (presidiu a comissão) e pela criação de um Parque Histórico de preservação da memória heróica da Nação Zumbi.
Foi ainda grande incentivadora das manifestações folclóricas da região da Mata e, principalmente, apaixonada pelo texto de cordel, que lia avidamente e sabia recitar muitos deles de memória.
Todas essas atividades, acrescidas de algumas irreverências, marcaram época na comunidade local. Uma delas conta que, em 1956, Mariá veste um maiô e, às margens do rio Mundaú, se deixa fotografar. Como se isso não bastasse – aparecer de maiô nos meados do século XX em uma cidade de fortes raízes oligárquicas, patriarcais e conservadoras -, a professora mostra as fotos para as alunas do Grupo Escolar Jorge de Lima, que ficaram deslumbradas com a modernidade da professora. O acontecimento desagradou a direção da escola que exigiu das autoridades da educação um castigo para a “devassa”.
Punida com o exílio, foi transferida para a cidade de Murici, lecionando no Grupo Escolar Professor Loureiro, permanecendo nessa instituição por seis meses. O que as autoridades não contavam era com a repercussão que o fato passou a ter: ela havia “feito escola” e suas seguidoras não deixaram o caso cair no esquecimento. Por isso, a transferência de União dos Palmares para outra cidade causou um profundo descontentamento nas suas alunas e se transformou em um caso político. As alunas resolvem acampar na porta do palácio do governo, em Maceió, exigindo do então governador do Estado, Muniz Falcão, que cancelasse a punição imposta à mestra.
O acontecimento ganha manchete nos jornais e, diante da pressão dos jovens acampados na praça, o governador recebe a comitiva em audiência e decide pelo retorno de Mariá. (No dia seguinte, 19 de abril de 1956, o Jornal de Alagoas apresenta a seguinte manchete: Ginasianas de União dos Palmares estiveram com o governador a propósito do caso da prof. Mariá).
Qual uma filha pródiga, Mariá é recebida na cidade natal com respeito e carinho, motivo maior de satisfação da filha que retorna ao lar, de onde nunca devia ter saído, já que poucas pessoas foram tão ligadas a sua terra e a sua gente como Maria Mariá.
Esse seu amor à terra estava acima do bem e do mal. E, por isso mesmo, Mariá entra em confronto direto com vários interesses políticos, econômicos e religiosos para defender o que ela considerava “patrimônio da terra”. Uma das passagens mais significativas desse seu apego à cultura local se deu quando a Igreja Matriz vai ser demolida para ser “substituída por uma construção quadrada, sem estilo definido, parecendo um armazém, uma casa comercial, um salão de dança, tudo menos um local para preces e meditações” (Gazeta de Alagoas, 13/03/77).
Mariá se dizia atéia e era comum viver discutindo com o pároco por duas grandes razões: dogmas que ela não acreditava e por ele ser estrangeiro e não conhecer os valores e os interesses da comunidade. Mas, mesmo não freqüentando a Igreja para orações, fica indignada quando sabe que a velha Matriz será demolida.
Organiza passeata, faz discurso inflamado cobrando um plebiscito para que o povo se colocasse contra ou a favor e publica um artigo na Gazeta (já citado) dizendo: “um ato criminoso, para o qual não há desculpa convincente, foi abaixo aquilo que tínhamos de mais antigo e tradicional, e para os fervorosos de mais sagrado – a nossa velha matriz. A praça Basiliano Sarmento como que ficou mutilada sem essa parte comum da sua paisagem, tão familiar e querida a nossos olhos”.
Continuando a sua indignação, Mariá ataca frontalmente o vigário e alguns conterrâneos, asseverando que: “o povo dessa cidade, como seria justo e direito, não foi ouvido através de um plebiscito, na ocasião em que os supostos donos da terra tomaram tão desastrada decisão, como se aqui fosse, por sua falta de respeito à lei, o velho oeste americano de que tomamos conhecimento através de famosos filmes da Metro Goldwyn Mayer”.
Finaliza sua denúncia lançando farpas irônicas em várias direções enfatizando que se o plebiscito fosse feito o povo “teria dito um Não veemente a estes depredadores disfarçados de amigos do progresso, quando visam apenas subir no conceito de meia dúzia de apaniguados, com que intenção... nem o Diabo sabe”.
Sempre preocupada com a preservação da cultura de Alagoas e, em especial, de União dos Palmares, desde muito cedo Maria Mariá adquiriu o hábito de guardar e colecionar todo e qualquer objeto que considerava de valor histórico. Morando sozinha, transformou a sua residência (casa que pertencera à família do poeta Jorge de Lima e de onde do primeiro andar avistava a Serra da Barriga), situada na Rua Correia de Oliveira, 65, em um museu e lá, em meio a belos móveis que remontam ao século XIX, reuniu um enorme acervo, tudo devidamente catalogado, segundo o seu critério: selos, dinheiro de várias épocas, placas com nomes de rua, revistas “Manchete”, “Fato e Fotos” e “Seleções”, livros (uma média de 240 volumes), folhetos de cordel, artigos de jornais da época, as pedrinhas que os alunos usavam para irem ao banheiro, telhas e pedaços de portas e janelas da igreja demolida e de casas antigas, ricas peças de louças, porcelanas raras, cerâmica, máquinas de datilografia, relógios, instrumentos musicais, fotografias e objetos curiosos como "uma xícara de bigode", usada no começo do século XX por homem que tinha bigode.
Além desse rico acervo, de valor histórico incalculável, uma das maiores curiosidades, do que até recentemente foi o Museu Maria Mariá, são as “pastas colecionadoras”. Nelas deixa a marca da sua capacidade de ver além do tempo, nos títulos com que denomina cada uma dessas pastas (mais de 20), numa consciência prévia do que estava deixando à posteridade. Por isso, as pastas/arquivos recebem alguns nomes reveladores, como por exemplo: uma pasta é intitulada com a expressão: “artigos publicados”; outra com “curiosidades”; outra tem o título “o que disse dos outros”, uma outra pasta aparece com o título “o que disseram de mim” e, assim, sucessivamente.
No dia 28 de fevereiro de 1993, às 10h20min de um dia ensolarado de domingo, vítima de um infarto agudo do miocárdio, aos 76 anos de idade, morre Maria Mariá. Solitária, desiludida e desencantada, a guerreira, afinal, despe as armas de combate. E, assim como viveu, desnudando-se diante da vida, assim também morreu. Ao ser encontrada morta, debruçada sobre o penteador, Mariá estava totalmente despida. A simbologia desse último gesto parece representar o esforço derradeiro dessa guerreira que lutou até o fim para vencer preconceitos e tabus.
A partir de então, União dos Palmares não mais se inscreve apenas como a cidade de Jorge de Lima e de Zumbi, mas também como a terra de Maria Mariá.
Curiosidade: Em 2004, recebeu a “Comenda do Mérito Educativo Alagoano”, concedido pelo Conselho Estadual de Educação.
Fotos: Arquivo fotográfico pertencente ao acervo de Maria Mariá.
Fonte de pesquisa: BOMFIM, Edilma Acioli. Mulheres Alagoanas: Memória Feminina de Alagoas. Jornal Gazeta de Alagoas. Maceió, 03 de agosto de 2001.
quinta-feira, 16 de junho de 2011
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2 comentários:
Maria Maria foi professora de meu falecido pai. Tive a felicidade de conhece-la e bater longos papos animados a cafes ou cervejinhas na casa de meu avo. Era impressionante notar que meu avo, mesmo sendo um homem austero e severo nutria por ela enorme admiracao. Sua figura energica ficou para sempre na minha lembranca, carinhosa e respeitosamente guardada. Era tambem grande amiga de minha tia Maria Jose correia de Araujo, outra mulher guerreira e tb injusticada, vez que foi homenageada com seu nome no predio da Secretaria de Educacao de Uniao dos Palmares e na administracao seguinte, simplesmente retiraram a homenagem... Fica aqui registrada a minha homenagem a essas duas educadoras de valor. Obrigada por terem existido ! Maria Maria e tia Detinha ! ou Detinha como era conhecida.
Nossa... ela é minha a tia da minha bisavó... tão bom ver a história dela.
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