História se transformando em pó
Peças de arte sacra, objetos históricos, livros e documentos raros abrigados na Casa de Maria Mariá, pertencentes
à coleção da historiadora alagoana, correm o risco de serem destruídos devido à reforma no prédio
Gilson Monteiro
Repórter
O JORNAL CADERNO DOIS
Sexta-feira, 20 de maio de 2011 | www.ojornalweb.com |
(Fotos-blog O Relâmpago)
A falta de habilidade dos gestores públicos com o patrimônio histórico surpreende até mesmo quando se tem boa intenção. Em União dos Palmares, a prefeitura está reformando a Casa de Maria Mariá, importante acervo colecionado pela professora e
historiadora, falecida em 1993, que ajuda a contar a história da Terra de Zumbi.
A boa notícia se transforma em tragédia quando se verifica que as obras começaram,
mas o acervo continua no local. Inacreditavelmente, a reforma do prédio está destruindo
a maior parte das peças existentes por lá, que futuramente ganharia instalações mais adequadas com a reforma. Um flagrante indesejável em pleno mês de maio, dedicado aos museus.
Tijolos, cimento e areia convivem lado a lado com peças como um piano alemão, tomado de poeira e cimento e, providencialmente, servindo para guardar pertences
dos pedreiros.
Um aparelho de TV à válvula, da década de 1960, repousa no piso empoeirado junto a um amontoado de entulhos e a outras peças de valor histórico e cultural incalculável.
A Casa abriga objetos como um aparelho de telefone do início do século XX e um missal (livro com missas e datas festivas) escrito em latim, que provavelmente não suportarão as intempéries de um canteiro de obras, além de curiosos objetos guardados pela professora Mariá, como palmatórias, usadas no passado para punir alunos desobedientes e pedras utilizadas para controlar a saída dos estudantes.
“Vistoriando” um pouco mais as obras, encontra-se uma coleção de mais de 300 livros, da qual pouca coisa poderá ser recuperada, em meio ao cimento e à areia, e raridades, como A queima de documentos da escravidão, com informações sobre o decreto que visava impedir tentativas de indenização pelos senhores de escravos após a abolição da escravatura, em 1888.
Livros raros viram pó ao lado de peças de arte sacra, bem como
uma máquina de datilografia Remington, onde Mariá escrevia crônicas e contos publicados em jornais do Estado.
Descaso gera revolta à população
A denúncia foi feita pela população da cidade, revoltada com o descaso. A reportagem
de O JORNAL foi até o local e flagrou as cenas chocantes que ilustram essa matéria. As fotos, tiradas no último dia 13, foram gentilmente cedidas por Genisete Lucena, que já comandou a secretaria Municipal de Cultura.
O secretário municipal de Cultura, Élson Davi, alega que a situação estava ainda pior quando a prefeitura passou a administrar o acervo. “Quem chega pode ter essa impressão de que o acervo está sendo destruído. Mas, quando chegamos lá para iniciar a reforma, tinha até mato dentro da casa. A situação era muito pior.
Tem peças que não podem ser retiradas e por isso estão lá. Os livros estavam umedecidos, uma massa de papel. Quando chegamos, o acervo já estava destruído, jogado às traças”, diz o secretário.
Questionado sobre se o que já estava ruim não ficou pior sem a devida proteção das peças durante a reforma, Élson Davi disse que a reforma está sendo orientada por uma arquiteta especializada na área.
“O projeto está sendo acompanhado por uma arquiteta da área. Estamos fazendo o possível para preservar, mas a situação não é fácil”, justifica, informando que a reforma custou, inicialmente, R$ 41 milhões e que a inauguração está prevista para o mês de junho. (G.M.)
Revolucionária amante das letras e das artes
Nascida em 16 de junho de 1917, em União dos Palmares, mesmo berço do herói Zumbi
dos Palmares e do poeta parnasiano Jorge de Lima, a historiadora, educadora, folclorista, jornalista e agitadora cultural Maria Mariá de Castro Sarmento notabilizou-
se por seu espírito revolucionário.
Amante das letras e artes, Mariá colecionou, ao longo de seus 75 anos de vida, uma série de livros raros, literatura de cordel, obras-de-arte, móveis e objetos, que transformaram sua residência, no centro de União, numa verdadeira viagem no tempo.
Com personalidade revolucionária, na década de 1950, Mariá causou reboliço ao ser a
primeira mulher a usar calças compridas na cidade. Como se não bastasse, em 1956, a professora se deixou fotografar usando apenas um maiô, às margens do rio Mundaú.
Ao mostrar as fotografias às alunas, a professora desagradou à direção da escola em que lecionava e acabou “exilada”, sendo transferida para a cidade de Murici. Revoltadas,
as alunas chegaram a acampar na porta do Palácio República dos Palmares, sede do governo do Estado, em Maceió, exigindo o fim da represália à Mariá ao então governador do Estado, Muniz Falcão. De volta à cidade natal, a professora foi recebida
com festa.
Na área cultural, Maria Mariá presidiu a comissão em prol do tombamento da Serra da Barriga e da criação de um Parque Histórico de preservação da memória de Zumbi dos Palmares.
Como educadora aboliu a palmatória, a qual considerava um instrumento de tortura, e colocou o cargo comissionado de inspetora regional da 7ª inspetoria por discordar do descaso do governo com a educação.
Frequentadora assídua da noite boêmia, Mariá tocava violão, bebia e fumava em público. Organizava vaquejadas, blocos carnavalescos e disputava campeonatos de dominó, sinuca e gamão - diversões vistas como exclusivas do sexo masculino à época. Comportamento impensável para as damas da metade do século XX. Fonte: Mulheres Alagoanas: Memória Feminina, de Edilma Acioli.
sexta-feira, 20 de maio de 2011
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