Meu tio Antônio Paes |
Olívia de Cássia - jornalista
Costumava
passar as férias escolares no sítio Barriguda, propriedade do meu tio Antônio
Paes de Siqueira, irmão mais velho da minha mãe e primo legítimo do meu pai. A
Barriguda pertence ao município de Capela, mas está localizada nas proximidades
de outros municípios vizinhos a União dos Palmares, em Alagoas. Eu ia sempre
com a tia Ozória Paes de Freitas, de saudosa memória, irmã caçula de mamãe, e a
prima Rita de Cássia Paes, sua filha. No sítio, andávamos a cavalo, tangíamos
os bois da almanjarra do engenho, que produzia rapadura e mel. Na casa de
farinha, que ficava bem ao lado do engenho, observávamos os trabalhadores
raspando a mandioca para produzir farinha e beiju, que depois comíamos ali
mesmo, acompanhados de um delicioso café torrado em casa.
Além de
brincar com as bonecas das nossas primas Sônia Paes e Fátima Paes, costumávamos
tomar o leite quente e fresco tirado das vacas, logo ao amanhecer, pelos
trabalhadores da Barriguda, e acordávamos com o barulho dos chocalhos dos
animais. Aquele cheiro do curral é inesquecível. Ali, a gente também brincava
de casinha, alimentava os bezerrinhos enjeitados pelas suas mães, quando não
estávamos fazendo outra traquinagem qualquer, como os gostosos banhos de bica.
A famosa bica
da Barriguda ficava um pouco distante da casa-sede e tínhamos que percorrer um
longo caminho para chegar até lá. Era num terreno rodeado de pedras e
plantações de bananeira e outras espécies de plantas nativas. Mas tínhamos que
ser cautelosos ao entrar no local do nosso banho, porque lá existiam muitos besouros
do tipo mangangá, que a qualquer hora poderiam nos atacar.
A Barriguda
vivia uma festa quando seu Antônio Matias, conhecido como Toinho Veterinário,
comparecia para vacinar o gado. Toinho, como e conhecido, é muito querido em
União dos Palmares e sempre gostou de animação e de ser festeiro. Em época de
carnaval costuma sair às ruas de União dos Palmares fantasiado e ganhou a
simpatia da população. Nos dias de vacinação dos animais ou de moenda do
engenho, era muita gente para comer, jogar conversa fora na varanda da casa e
contar casos e mais casos. Minha tia Marieta Vieira Paes, que também era nossa
prima, confusão que eu não entendia muito bem, costumava cozinhar vários tipos
de comida, tudo natural e sem agrotóxico. Fazia deliciosos bolos e doces
caseiros, cocadas, galinha caipira, e tudo aquilo que nós gostávamos de comer.
Eu tinha o
hábito de ouvir as conversas dos homens na varanda da casa e achava mais
interessante do que ficar na cozinha com as mulheres. Aquela vida do sítio me
encantava e sempre que podíamos estávamos lá (eu, minha tia Ozória e minha
prima Rita de Cássia). Íamos de carona nos caminhões que levavam cana para a
Usina Laginha, de propriedade do usineiro João Lyra. A vista da casa-sede da Barriguda era linda; fazia
gosto de ver, encantava os olhos. Bem à frente se via a Serra da Barriga, sede
do Quilombo dos Palmares, imponente e majestosa. Outras serras como a do Cafuxi
(que também fazia parte do velho quilombo), contornam a Barriguda e fazem
limite das cidades circunvizinhas de União dos Palmares. E quando a antiga
igreja Matriz de Santa Maria Madalena ainda estava erguida, dava para se ver a
torre, que em época de festa ficava toda iluminada.
Eu gostava de
ficar na companhia do meu tio Antônio Paes, horas a fio, durante o dia, quando
ele não estava no campo, ouvindo as várias histórias da família, ou fatos que
aconteciam lá no sítio. Quando ele vinha da lida com os peões e eu o avistava
subindo a ladeira no burro corria e ia ao encontro dele, para voltar em cima do
animal. Eu gostava de andar a cavalo e não perdia oportunidade, até quando os
trabalhadores iam buscar água de beber na cacimba, íamos, eu e Rita, em cima
das latas onde era colocada a água de beber da casa. Com o tempo fui ficando
medrosa e perdendo o hábito da montaria. Não é que eu soubesse guiar o cavalo
com destreza, pois sempre estava acompanhada de alguém para andar nos animais.
Diferente da minha mãe que diziam, quando era nova, era uma exímia amazona.
Meu tio
Antônio Paes de Siqueira e a prima Marieta Vieira Paes tiveram seis filhos:
Eugênio, José, Gedalva, Elza (que era portadora de nanismo), Sônia e Fátima,
nessa ordem. A história desse meu tio ficou conhecida em toda a União devido às
tragédias que se sucederam ao longo de sua vida. Tia Marieta morreu vitimada
por um câncer no estômago. Nessa época eu ainda estava com oito ou nove anos de
idade. Senti muito a morte dela, apesar
da pouca idade, pois eu era sua companheira e da prima Elza, para escutarmos os
programas de rádio, principalmente as radionovelas, que eram comuns na década
de 60, enquanto a minha tia e a prima Elza teciam belos bordados à mão. Éramos ouvintes fiéis de todas elas e
chegávamos a nos comover com os dramalhões dos personagens envolvidos na trama.
Meu primo José Paes, filho de tio
Antônio, era fanático por vaquejada e não perdia uma festa de peão nas
redondezas de União ou em outro município vizinho. Ele disputava conosco a
sintonia do rádio, quando não estava no campo cuidando do gado e do sítio, pois
algumas novelas eram transmitidas quase no mesmo horário dos programas de
aboio. José também ficava atento já que, naquela época, não tinha energia na
Barriguda muito menos televisão, que estava começando a aparecer no interior do
Brasil nos meados da década de 60.
O velho rádio
ABC de meus tios funcionava a pilha e era o único meio de comunicação com o
mundo que tínhamos a não serem as comunicações orais vindas de pessoas de fora,
dos matutos e visitantes. Os mascates costumavam dar uma passadinha por lá,
para vender os seus produtos, além dos retratistas, os chamados lambe-lambe,
que sempre chegavam com alguma novidade. Nos dias de finados, meus primos
costumavam fazer brincadeiras como colocar caveiras feitas de abóboras, com
velas acesas, pelos cantos da varanda da casa. Em época de São João, meu tio
mandava fazer fogueiras enormes, que eram erguidas em frente da casa, para que
ficássemos até tarde conversando, comendo milho assado, fazendo as adivinhações
e brincadeiras próprias das festas juninas.
Os filhos
homens do meu tio - José e Eugênio - dormiam na casa da escolinha, separados da
família. A casa da escolinha era próxima ao curral, local em que se guardavam
os arreios dos animais. Lá ficava armada uma rede na qual nos balançávamos
durante o dia. Ao lado da escolinha tinha outra pequena casa, onde meu tio
guardava o milho para o alimento dos animais e o feijão de corda tirado da
roça, para ser debulhado. Meu primo José Paes morreu muito precocemente, com
pouco tempo de casado e não deixou filhos. Ele foi vítima de uma queda do
cavalo que estava montando e quebrou o pescoço num torneio de vaquejada no
município de Capela. Nosso núcleo familiar ficou enlutado por muito tempo, pois
as mortes continuaram a acontecer na família do meu tio.
Gedalva, a
mais velha das mulheres, era casada com o primo José Paes Lopes, filho da tia
Maria Paes, irmã de tia Marieta, natural de Murici, e dele teve quatro filhos:
Antônio César, Catarina, Tadeu (que nos anos noventa também sofreu um acidente
de moto e foi esmagado por uma carreta), e Cristiane. Gedalva também foi
portadora de CA e veio a falecer ainda muito nova deixando os filhos pequenos.
Os meninos foram criados em Murici pela avó, tia Maria Paes, e por Sebastiana,
filha de tia Maria. Gê, como a chamávamos, era uma linda mulher, parecida com a
mãe. Morena, de sorriso largo e dentes perfeitos, cabelos negros compridos,
alta e de busto saliente.
Depois da
morte de Gedalva também perdemos Sônia, que foi vítima de um grave acidente
automobilístico quando ia de União para Maceió ganhar a sua segunda filha. Sônia tinha morado em nossa casa durante um
tempo, antes de casar com Marcelo Galvão, quando meus tios moravam no sítio;
era como se fosse uma irmã mais velha. Ela deixou uma filha (Ana Mariette) que
ainda não tinha completado três anos de idade. No mesmo ano da morte de Sônia
morreram meus avós maternos (vovó Olívia e meu avô Manoel Paes), isso em 1975,
o que me levou a usar roupa preta como sinal de luto por muito tempo, pois era
um costume antigamente, quando morria alguém na família.
Com cinco
meses de viuvez meu tio Antônio Paes casou novamente, comprou casa em União dos
Palmares, constituiu nova família, mas continuou com a Barriguda. Meus pais
foram testemunhas do casamento de tio Antônio e Hermínia e minha prima Rita e
eu fomos porta-alianças. Os filhos de Marieta não queriam o casamento dele com
Hermínia, porque achavam muito recente a morte da mãe ou porque não queriam
dividir o pai com outra mulher. Mas meu tio casou e foi muito feliz com sua
nova esposa. Tia Hermínia teve três filhos: Mônica, Júlio e Claudenice.
Em 1980, Fátima, a filha mais nova de tio Antônio e da minha
tia-prima Marieta, foi também vítima de um violento câncer, que começou no
ovário e se alastrou por todo o seu corpo. Fátima estava noiva de José Vieira;
seu maior sonho era casar e constituir família. Nessa época, eu estava no Rio
de Janeiro, pois tinha ido arriscar a possibilidade de fixar residência por lá,
por ter sido reprovada no meu primeiro vestibular (para medicina). Minha mãe
havia me despachado para a casa dos meus tios com a finalidade de me afastar de
União por conta das minhas amizades que ela não aprovava.
Precisei voltar para ajudar minha prima Elza a cuidar de
Fátima. Uma semana depois da minha chegada a Alagoas ela veio a falecer, depois
de dois meses de internamento na Santa Casa de Misericórdia de Maceió e ter
consumido 28 balões de oxigênio. Fátima sentia muitas dores e os médicos tinham
que lhe aplicar injeções de morfina, quase que de meia em meia hora. Além do
doutor Hélio Medeiros, Juan era o médico-acadêmico que cuidava dela na Santa
Casa e ela o chamava o tempo inteiro, pois tinha muita confiança no médico.
Estava irreconhecível, tragada pelo maldito câncer. Seus lindos cabelos pretos
caíram todos e ela estava que era só pele e osso. Minha prima aparentava ser
uma pessoa triste, como se estivesse prevendo que não ia viver por muito tempo;
quando morreu estava com 26 anos; cheia
de planos para o casamento. Não queria que lhe tirássemos a aliança, que
preservou até a morte na mão direita. Seu semblante triste chamava a atenção de
quem a conhecia.
Eu e Fátima gostávamos muito de sair: íamos aos bailes
noturnos de Carnaval na Palmarina (o clube da cidade), ou fazíamos pequenos
passeios à casa de Jacy Lúcia, irmã de Marcelo, seu cunhado, com quem selei uma
forte amizade, apesar do pouco tempo que temos para nos comunicar. Anos depois
da morte de Fátima, Eugênio, o irmão mais velho, também morre, na mesa de
cirurgia, no Rio de Janeiro, quando foi extrair um tumor na coluna e, bem mais
tarde Elza, de leucemia, também no Rio de Janeiro.
* (Este texto faz
parte do CAPÍTULO I do meu livro de memórias ainda não publicado)
Um comentário:
bom! sou filho de claudenice, fiquei feliz em ver esse blog.Posso conhecer um pouco da história do meu avô.
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