quarta-feira, 18 de junho de 2014

A Barriguda do meu tio Antônio Paes *

Meu tio Antônio Paes
Olívia de Cássia - jornalista
       
         Costumava passar as férias escolares no sítio Barriguda, propriedade do meu tio Antônio Paes de Siqueira, irmão mais velho da minha mãe e primo legítimo do meu pai. A Barriguda pertence ao município de Capela, mas está localizada nas proximidades de outros municípios vizinhos a União dos Palmares, em Alagoas. Eu ia sempre com a tia Ozória Paes de Freitas, de saudosa memória, irmã caçula de mamãe, e a prima Rita de Cássia Paes, sua filha. No sítio, andávamos a cavalo, tangíamos os bois da almanjarra do engenho, que produzia rapadura e mel. Na casa de farinha, que ficava bem ao lado do engenho, observávamos os trabalhadores raspando a mandioca para produzir farinha e beiju, que depois comíamos ali mesmo, acompanhados de um delicioso café torrado em casa.

          Além de brincar com as bonecas das nossas primas Sônia Paes e Fátima Paes, costumávamos tomar o leite quente e fresco tirado das vacas, logo ao amanhecer, pelos trabalhadores da Barriguda, e acordávamos com o barulho dos chocalhos dos animais. Aquele cheiro do curral é inesquecível. Ali, a gente também brincava de casinha, alimentava os bezerrinhos enjeitados pelas suas mães, quando não estávamos fazendo outra traquinagem qualquer, como os gostosos banhos de bica.

         A famosa bica da Barriguda ficava um pouco distante da casa-sede e tínhamos que percorrer um longo caminho para chegar até lá. Era num terreno rodeado de pedras e plantações de bananeira e outras espécies de plantas nativas. Mas tínhamos que ser cautelosos ao entrar no local do nosso banho, porque lá existiam muitos besouros do tipo mangangá, que a qualquer hora poderiam nos atacar.

         A Barriguda vivia uma festa quando seu Antônio Matias, conhecido como Toinho Veterinário, comparecia para vacinar o gado. Toinho, como e conhecido, é muito querido em União dos Palmares e sempre gostou de animação e de ser festeiro. Em época de carnaval costuma sair às ruas de União dos Palmares fantasiado e ganhou a simpatia da população. Nos dias de vacinação dos animais ou de moenda do engenho, era muita gente para comer, jogar conversa fora na varanda da casa e contar casos e mais casos. Minha tia Marieta Vieira Paes, que também era nossa prima, confusão que eu não entendia muito bem, costumava cozinhar vários tipos de comida, tudo natural e sem agrotóxico. Fazia deliciosos bolos e doces caseiros, cocadas, galinha caipira, e tudo aquilo que nós gostávamos de comer.

           Eu tinha o hábito de ouvir as conversas dos homens na varanda da casa e achava mais interessante do que ficar na cozinha com as mulheres. Aquela vida do sítio me encantava e sempre que podíamos estávamos lá (eu, minha tia Ozória e minha prima Rita de Cássia). Íamos de carona nos caminhões que levavam cana para a Usina Laginha, de propriedade do usineiro João Lyra.  A vista da casa-sede da Barriguda era linda; fazia gosto de ver, encantava os olhos. Bem à frente se via a Serra da Barriga, sede do Quilombo dos Palmares, imponente e majestosa. Outras serras como a do Cafuxi (que também fazia parte do velho quilombo), contornam a Barriguda e fazem limite das cidades circunvizinhas de União dos Palmares. E quando a antiga igreja Matriz de Santa Maria Madalena ainda estava erguida, dava para se ver a torre, que em época de festa ficava toda iluminada.

         Eu gostava de ficar na companhia do meu tio Antônio Paes, horas a fio, durante o dia, quando ele não estava no campo, ouvindo as várias histórias da família, ou fatos que aconteciam lá no sítio. Quando ele vinha da lida com os peões e eu o avistava subindo a ladeira no burro corria e ia ao encontro dele, para voltar em cima do animal. Eu gostava de andar a cavalo e não perdia oportunidade, até quando os trabalhadores iam buscar água de beber na cacimba, íamos, eu e Rita, em cima das latas onde era colocada a água de beber da casa. Com o tempo fui ficando medrosa e perdendo o hábito da montaria. Não é que eu soubesse guiar o cavalo com destreza, pois sempre estava acompanhada de alguém para andar nos animais. Diferente da minha mãe que diziam, quando era nova, era uma exímia amazona.

         Meu tio Antônio Paes de Siqueira e a prima Marieta Vieira Paes tiveram seis filhos: Eugênio, José, Gedalva, Elza (que era portadora de nanismo), Sônia e Fátima, nessa ordem. A história desse meu tio ficou conhecida em toda a União devido às tragédias que se sucederam ao longo de sua vida. Tia Marieta morreu vitimada por um câncer no estômago. Nessa época eu ainda estava com oito ou nove anos de idade.  Senti muito a morte dela, apesar da pouca idade, pois eu era sua companheira e da prima Elza, para escutarmos os programas de rádio, principalmente as radionovelas, que eram comuns na década de 60, enquanto a minha tia e a prima Elza teciam belos bordados à mão.  Éramos ouvintes fiéis de todas elas e chegávamos a nos comover com os dramalhões dos personagens envolvidos na trama.

         Meu primo José Paes, filho de tio Antônio, era fanático por vaquejada e não perdia uma festa de peão nas redondezas de União ou em outro município vizinho. Ele disputava conosco a sintonia do rádio, quando não estava no campo cuidando do gado e do sítio, pois algumas novelas eram transmitidas quase no mesmo horário dos programas de aboio. José também ficava atento já que, naquela época, não tinha energia na Barriguda muito menos televisão, que estava começando a aparecer no interior do Brasil nos meados da década de 60.

         O velho rádio ABC de meus tios funcionava a pilha e era o único meio de comunicação com o mundo que tínhamos a não serem as comunicações orais vindas de pessoas de fora, dos matutos e visitantes. Os mascates costumavam dar uma passadinha por lá, para vender os seus produtos, além dos retratistas, os chamados lambe-lambe, que sempre chegavam com alguma novidade. Nos dias de finados, meus primos costumavam fazer brincadeiras como colocar caveiras feitas de abóboras, com velas acesas, pelos cantos da varanda da casa. Em época de São João, meu tio mandava fazer fogueiras enormes, que eram erguidas em frente da casa, para que ficássemos até tarde conversando, comendo milho assado, fazendo as adivinhações e brincadeiras próprias das festas juninas.

         Os filhos homens do meu tio - José e Eugênio - dormiam na casa da escolinha, separados da família. A casa da escolinha era próxima ao curral, local em que se guardavam os arreios dos animais. Lá ficava armada uma rede na qual nos balançávamos durante o dia. Ao lado da escolinha tinha outra pequena casa, onde meu tio guardava o milho para o alimento dos animais e o feijão de corda tirado da roça, para ser debulhado. Meu primo José Paes morreu muito precocemente, com pouco tempo de casado e não deixou filhos. Ele foi vítima de uma queda do cavalo que estava montando e quebrou o pescoço num torneio de vaquejada no município de Capela. Nosso núcleo familiar ficou enlutado por muito tempo, pois as mortes continuaram a acontecer na família do meu tio.

          Gedalva, a mais velha das mulheres, era casada com o primo José Paes Lopes, filho da tia Maria Paes, irmã de tia Marieta, natural de Murici, e dele teve quatro filhos: Antônio César, Catarina, Tadeu (que nos anos noventa também sofreu um acidente de moto e foi esmagado por uma carreta), e Cristiane. Gedalva também foi portadora de CA e veio a falecer ainda muito nova deixando os filhos pequenos. Os meninos foram criados em Murici pela avó, tia Maria Paes, e por Sebastiana, filha de tia Maria. Gê, como a chamávamos, era uma linda mulher, parecida com a mãe. Morena, de sorriso largo e dentes perfeitos, cabelos negros compridos, alta e de busto saliente.

         Depois da morte de Gedalva também perdemos Sônia, que foi vítima de um grave acidente automobilístico quando ia de União para Maceió ganhar a sua segunda filha.  Sônia tinha morado em nossa casa durante um tempo, antes de casar com Marcelo Galvão, quando meus tios moravam no sítio; era como se fosse uma irmã mais velha. Ela deixou uma filha (Ana Mariette) que ainda não tinha completado três anos de idade. No mesmo ano da morte de Sônia morreram meus avós maternos (vovó Olívia e meu avô Manoel Paes), isso em 1975, o que me levou a usar roupa preta como sinal de luto por muito tempo, pois era um costume antigamente, quando morria alguém na família.

         Com cinco meses de viuvez meu tio Antônio Paes casou novamente, comprou casa em União dos Palmares, constituiu nova família, mas continuou com a Barriguda. Meus pais foram testemunhas do casamento de tio Antônio e Hermínia e minha prima Rita e eu fomos porta-alianças. Os filhos de Marieta não queriam o casamento dele com Hermínia, porque achavam muito recente a morte da mãe ou porque não queriam dividir o pai com outra mulher. Mas meu tio casou e foi muito feliz com sua nova esposa. Tia Hermínia teve três filhos: Mônica, Júlio e Claudenice.

Em 1980, Fátima, a filha mais nova de tio Antônio e da minha tia-prima Marieta, foi também vítima de um violento câncer, que começou no ovário e se alastrou por todo o seu corpo. Fátima estava noiva de José Vieira; seu maior sonho era casar e constituir família. Nessa época, eu estava no Rio de Janeiro, pois tinha ido arriscar a possibilidade de fixar residência por lá, por ter sido reprovada no meu primeiro vestibular (para medicina). Minha mãe havia me despachado para a casa dos meus tios com a finalidade de me afastar de União por conta das minhas amizades que ela não aprovava.

Precisei voltar para ajudar minha prima Elza a cuidar de Fátima. Uma semana depois da minha chegada a Alagoas ela veio a falecer, depois de dois meses de internamento na Santa Casa de Misericórdia de Maceió e ter consumido 28 balões de oxigênio. Fátima sentia muitas dores e os médicos tinham que lhe aplicar injeções de morfina, quase que de meia em meia hora. Além do doutor Hélio Medeiros, Juan era o médico-acadêmico que cuidava dela na Santa Casa e ela o chamava o tempo inteiro, pois tinha muita confiança no médico. Estava irreconhecível, tragada pelo maldito câncer. Seus lindos cabelos pretos caíram todos e ela estava que era só pele e osso. Minha prima aparentava ser uma pessoa triste, como se estivesse prevendo que não ia viver por muito tempo; quando morreu estava com 26 anos;  cheia de planos para o casamento. Não queria que lhe tirássemos a aliança, que preservou até a morte na mão direita. Seu semblante triste chamava a atenção de quem a conhecia.

Eu e Fátima gostávamos muito de sair: íamos aos bailes noturnos de Carnaval na Palmarina (o clube da cidade), ou fazíamos pequenos passeios à casa de Jacy Lúcia, irmã de Marcelo, seu cunhado, com quem selei uma forte amizade, apesar do pouco tempo que temos para nos comunicar. Anos depois da morte de Fátima, Eugênio, o irmão mais velho, também morre, na mesa de cirurgia, no Rio de Janeiro, quando foi extrair um tumor na coluna e, bem mais tarde Elza, de leucemia, também no Rio de Janeiro.

 * (Este texto faz parte do CAPÍTULO I do meu livro de memórias ainda não publicado)


Um comentário:

Anônimo disse...

bom! sou filho de claudenice, fiquei feliz em ver esse blog.Posso conhecer um pouco da história do meu avô.

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