domingo, 29 de junho de 2014

Meu tio Júlio e o mobiliário de vovó Olívia


Olívia de Cássia - jornalista

Meu tio Júlio Paes de Siqueira, irmão mais novo de mamãe, foi muito discriminado pela nossa família. Ele não tinha o jeito carrancudo do meu avô. Suas feições eram finas, nariz afilado, bom caráter, e era muito compreensivo com as pessoas. Era um homem pacato, pálido e doente, desprovido de vaidade e de preconceitos raciais, tanto que foi morar com uma mulher negra, o que causou a rejeição de toda a nossa família.

Sem profissão definida, tio Júlio transportava carvão no lombo de um burro do sítio para União dos Palmares, nos dias de feira do município. Ele não teve instrução escolar ou, se teve, foi muito pouca, da mesma forma que meus tios e meus pais, que só aprenderam as primeiras letras e as primeiras somas da tabuada. Tio Júlio era um homem bom e compreensivo, lembro muito dele, com saudade.

 Eu percebia que a minha avó Olívia ficava desgostosa pelo fato de viver afastada do filho caçula, mas os irmãos, a minha mãe e meu avô Manoel rejeitavam a mulher com quem ele morava. Ela teve dois filhos do meu tio: José Maria e Lúcia, que só fui conhecer quando já estavam garoto.

Quando ele foi morar no Rio de Janeiro nasceu outro filho, Cacau, mas não tivemos aproximação. Anos mais tarde, nasceu uma grande amizade entre José Maria e eu, embora vivamos afastados geograficamente. De vez em quando trocamos telefonemas longos ou mensagens na internet falando das novidades e fazendo intercâmbio das notícias dos nossos familiares. Zé Maria é uma pessoa muito decente.

Com Lúcia eu não tive muito contato, pois fomos criadas muito distantes uma da outra, devido a esses preconceitos e questões familiares, mas outro dia mantivemos contato numa rede social, que tem me servido para encontrar vários familiares distantes.

Vovó Olívia mantinha um quarto simples, mas limpo e preparado para quando tio Júlio chegasse pudesse fazer pernoite lá, na casa da Rua da Ponte. Era o segundo quarto do imóvel: uma camarinha, como vovó chamava, composta de apenas uma cama de catre e colchão de capim e um baú enorme, onde minha avó guardava alguns pertences: lençóis, panos de pratos e outros objetos do uso diário.

Tio Júlio morreu em União, época em que estava morando com meus pais. Sofria de baço e cirrose; tinha a chamada barrida d’água como é chamada no interior a doença provocada pela esquistossomose, causada por um verme, o Schistosoma mansoni, que ataca o fígado e o intestino do homem.

A pessoa doente que traz os vermes em suas fezes, quando faz suas necessidades fisiológicas próximo de rios, açudes ou lagoas, poços ou riachos, liberam essas larvas, que entram nos caramujos existentes nas águas. Alguém que a beba, tome banho, pesque ou que use estas águas se contamina, pois as larvas entram no homem pela pele. Da mesma forma que na roça não tinha saneamento básico e meu tio vivia metido nessas águas, contraiu a doença. 

O mobiliário da minha avó era muito rústico e simples. Na sala ficava armada uma rede, onde eu costumava me balançar com minhas bonecas; duas cadeiras pretas comuns da mesa e a famosa espreguiçadeira do meu avô acompanhada de uma escarradeira. 

No primeiro quarto tinha apenas uma cama de casal e dois baús enormes, onde ela colocava seus vestidos floridos e as roupas de uso diário do meu avô. O guarda-roupa não cabia no quarto e ficava na sala de janta, compondo com a velha mesa e o petisqueiro, espécie de guarda-comida, onde era guardada a louça da casa. 

Além dessa simples mobília, tinha um tripé de ferro com uma bacia cheia de água, para a limpeza das mãos, uma pequena mesa onde era colocada a quartinha de barro, os copos e os remédios de uso diário, para reumatismo, que minha avó chamava de “meisinha”, além do Biotônico Fontoura, que meu avô tomava todos os dias, religiosamente. 

O piso da casa era de tijolo batido e bem mais baixo que a calçada. As portas da frente e dos fundos eram antigas, daquelas que se costuma observar em cidades históricas do Brasil, a exemplo de Marechal Deodoro, em Alagoas, tudo na cor verde. Eram divididas em duas partes de madeira, com duas janelas na frente e uma nos fundos. 

A residência dos meus avós não tinha instalação sanitária, como a maioria das casas da Demócrito Gracindo, naquela época, e as necessidades fisiológicas eram feitas no penico e jogadas numa lagoa, braço do Rio Mundaú, que ficava localizada no quintal das residências, do lado esquerdo de quem entrava na Rua da Ponte. 

Na cozinha estavam colocados mais dois baús pequenos, de jacarandá, uma mesa, uma prateleira, o pilão de pisar o café caseiro, que vovó torrava num grande tacho de cobre e um grande fogão movido a carvão onde dona Olívia cozinhava os alimentos e meu avô Manoel preparava o café que bebia o dia inteiro.

Era uma chaleira à beira do fogo, o dia todo, esquentando e requentando aquele café, porque vovô não tomava água e dizia que água era só para tomar comprimido, quando precisasse. Foi com ele que adquiri dois hábitos considerados hoje “politicamente incorretos”: tomar café e fumar, hábito que alimentei por muito tempo. 

O acesso ao quintal da casa era por meio de uns degraus; ao lado dos degraus tinha uma ladeirinha onde eu gostava de brincar de escorrego, enquanto meu avô regava os pés de laranja ali plantados. Vovó Olívia criava alguns patos, que recebia de presente dos seus vizinhos, seu Damásio e dona Paulina. Seu Damásio era amigo do meu avô e fazia foguetes e outros artefatos de pólvora. 

Vovó fazia deliciosas paneladas com aqueles patos, que comíamos com farofa d’água e arroz branco. Era uma das especialidades dela. Minha avó gostava de animais e possuiu um gato preto, trazido do sítio, que tinha uma manchinha branca no pescoço. O gato se chamava Mimi e depois que vovó se foi, o bichano desertou e nunca mais o vimos. 

Dos cinco baús que pertenceram a minha avó Olívia, eu fiquei com um, onde guardo antigas fotografias. Além do pequeno baú, “herdei” um par de brincos de ouro do Juazeiro e meu avô me deixou um broche com um desenho de São Braz, que ele afirmava livrar a pessoa de morrer engasgada. 

Quando meus avós precisaram viajar para o Rio de Janeiro, no final da década de 60, para que vovó se submetesse a uma cirurgia de catarata, eu sofri muito. Achava que não fossem voltar mais. No dia da viagem fiquei muito triste, amuada, porque também queria viajar na companhia deles. No meu desespero de criança, corri para a mercearia do meu pai, peguei um pedaço de papel de embrulhar pão e coloquei minhas poucas roupas, afirmando que também ia viajar. 

Eu acreditava que tudo era muito simples, não entendia dos trâmites burocráticos para se fazer uma viagem e na hora em que o ônibus estacionou em frente à nossa casa da Rua da Ponte, para que eles embarcassem, caí em prantos e meu avô também chorava. Depois de crescida fiquei sabendo, pelos meus tios, que durante a viagem ele chorou muito, preocupado com o meu estado emocional. 

No retorno da viagem, meu avô trouxe dois joguinhos de panelas de plástico, com cores diferenciadas. Um para mim e outro para a minha prima Rita, além de várias panelinhas de alumínio, que eu tinha muito ciúmes. 

Os brinquedos que eu recebia de presente eu mantive conservados até os 17 anos, idade em que ainda brincava de bonecas, muitas vezes na rua, em frente à casa da minha nova amiga Yelnya Cardoso, na Praça Antenor de Mendonça Uchôa. Só me desfiz das bonecas e dos brinquedos, doando-os à minha prima Ana Mariette, filha de Sônia e Marcelo, quando comecei a namorar mais sério.

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