Anivaldo Miranda (*)
Quando um fato político é envolto em certa cortina de
mistério, um dos métodos mais tradicionais para desvendá-lo é sempre
perguntar-se a quem ou a qual propósito serve ou não serve, seja consciente ou
inconscientemente. Para entender o súbito emergir dos Black Blocs na cena
político-social e na grande mídia, para além dos estragos materiais que causam,
utilizar o velho método de investigação é sempre aconselhável, pelo menos para
dar celeridade a esse entendimento.
Não há qualquer margem de erro se afirmarmos que,
definitivamente, os Black Blocs não servem aos propósitos das centenas de
milhares de pessoas que foram às ruas, nas jornadas de junho de 2013, para
protestar contra a péssima qualidade dos serviços no Brasil e, por tabela,
contra as grandes mazelas do país, a começar pela corrupção, passando pela
violência e pelos gastos públicos de necessidade discutível, dentre outros.
Do ponto de vista prático, é visível a percepção de que o
irromper de sua aparição nas manifestações massivas - nas quais o volume
impressionante de pessoas indignadas com os governos por si só estava gerando
efeitos políticos positivos e imediatos - funcionou como uma ducha de água fria
e, de fato, serviu apenas para acelerar prematuramente o refluxo do movimento,
mesmo considerando todo o seu caráter difuso, heterogêneo e passageiro.
Os Black Blocs, portanto, funcionaram como elementos de
neutralização e até de distorção da imagem dos movimentos de junho, fornecendo
valioso discurso para muitos setores dos governos, partidos, poderes e
instituições que, incomodados com a cobrança das ruas, ansiavam por argumentos
que lhes permitissem desqualificar ou ignorar o conteúdo das bandeiras que
reclamavam mudanças mais profundas no cotidiano da atividade política,
administrativa e econômica do país.
Não foi, portanto, a polícia, como quiseram apresentar os
Black Blocs e seus teóricos, anônimos ou não, o elemento de que se beneficiou o
sistema instituído, para esvaziar os movimentos, mas, sim, o efeito
desmobilizador e desorientador da violência gratuita que explodiu exatamente no
momento em que o caráter pacífico e massivo das manifestações atraíam multidões
cada vez maiores, numa demonstração de maturidade democrática que colocou o
chamado “establishment” totalmente na defensiva.
A polícia e as autoridades a que estão submetidas deram,
evidentemente, várias demonstrações de despreparo no desempenho de suas funções
diante de manifestações públicas onde seu papel é garantir o direito de reunião
e, ao mesmo tempo, ordenar o trânsito e prevenir ou coibir, evidentemente, atos
de vandalismo.
Mas, não foram a inatividade algumas vezes deliberada da força
pública ou os excessos oficiais de violência, sempre condenáveis, embora
totalmente passíveis de correção, o que prevaleceu como a tônica daqueles
eventos. Essa, é óbvio, foi dada pela inconsequência dos Black Blocs e por
todos os pescadores de águas turvas a eles associados direta ou indiretamente
ou deles beneficiários.
Política e ideologicamente os Black Blocs são primários e
seus argumentos toscos, além de se constituírem em minorias visíveis. Ocorre,
porém, que, devidamente manipulados ou ignorados, podem se constituir, dentre
tantas outras minorias de caráter extremista, seja de esquerda, religiosas
fundamentalistas ou até fascistas, em fatores negativos para o processo de
amadurecimento democrático do Brasil.
Por isso suas ações merecem atenção e suas postulações
merecem resposta, sobretudo no contexto das redes sociais, onde uma parcela
importante da juventude que se inclina à politização pode ser atraída por um
discurso anacrônico historicamente, mas passível de se apresentar como algo
novo mediante uma “mãozinha” de certos acadêmicos que, nostálgicos, querem
repetir caricatamente experiências que o passado das lutas sociais já esgotou.
Carentes de legitimidade política, identidade ideológica e
referência histórica, grupos do tipo Black Bloc precisam desesperadamente de
algumas conceituações teóricas, mesmo simplórias e no caso supostamente de
esquerda, para a composição de um discurso minimamente palatável como
justificativa de suas ações e de seu proselitismo.
Foram, portanto, buscar no movimento autonomista europeu e
nas postulações aventureiras da chamada “ação direta,” a inspiração para
replicar no Brasil, 30 anos depois, táticas de ação violenta que agora se
destinam atingir os símbolos mais visíveis do capitalismo globalizado como
forma de superação dos métodos ditos ineficientes dos movimentos sociais e
políticos que se utilizam dos instrumentos democráticos para fazer avançar na
sociedade o processo contínuo de conquistas de direitos e transformação da
sociedade.
Como se constitui contradição intransponível reclamar-se de
esquerda e, ao mesmo tempo, abominar os espaços democráticos que a sociedade e
a própria esquerda conquistaram para viabilizar o avanço de suas lutas, os
Black Blocs apresentam-se, para justificar sua presença nos movimentos, como os
“defensores” dos manifestantes contra a truculência da polícia cuja intervenção
eles próprios provocam ao transpor as fronteiras daquilo que poderia ser
caracterizado como indignação cívica, evoluindo, assim, para a prática de atos
de vandalismo totalmente gratuitos.
Os melhores defensores das manifestações são a Constituição
da República, o caráter massivo dessas manifestações, a justeza de suas bandeiras
e, sobretudo, a maturidade política e capacidade de organização dos
manifestantes. Numa democracia, nada melhor que o exercício das liberdades
públicas e dos direitos constitucionais para dar segurança e fazer avançar as
lutas da comunidade. Desconfiai, portanto, de quaisquer “defensores” da
sociedade que se arvoram como tais sem antes ter o cuidado de perguntar ao povo
se por eles deseja ser “defendido.”
Como as redes sociais no contexto da Internet representam
uma evolução da modernidade comunicativa, onde a interatividade do fluxo
astronômico de mensagens dispensa a ideia de centros de comando, os Black Blocs
e assemelhados, disso procuram se servir para construir, no terreno da ação
política, uma falsa similitude com o ambiente libertário, digamos assim, da
Internet.
Adicionam a isso uma outra similitude, dessa vez histórica,
com as raízes do anarquismo, muito embora, em termos conceituais e práticos,
estejam anos luz de distância seja das condições histórico-sociais que
produziram o anarquismo, seja dos fundamentos de sua teoria
político-ideológica.
Críticos do capitalismo monopolista globalizado são, em
verdade, um produto bizarro da própria globalização capitalista que estimula,
não raro, a cópia caricatural de fenômenos europeus em contextos brasileiros,
sem qualquer adaptação ou tratamento crítico, atendendo a um modismo e a uma
espécie de macaquice midiática que reflete a própria miséria ideológica da
esquerda a que esses Black Blocs dizem pertencer.
Porém, como se constituem em grupos formados majoritariamente
por jovens e se utilizam de um discurso apelativo à coragem, ao desprendimento,
à negação do “estabelecido” e ao imaginário supostamente emancipador, os Black
Blocs atingem ideologicamente um contingente de pessoas que é bem maior do que aquilo
que fisicamente eles podem mobilizar, ou seja, muitas pessoas não se dispõem a
fazer o que eles fazem, mas no fundo por tal coisa sentem simpatia. E isso não
é bom para a democracia.
Não é bom porque vários grupos, segmentos partidários,
movimentos de diversa extração ideológica, seja de esquerda ou direita,
partindo de outras premissas ou plataformas reivindicatórias, também demonstram
desprezo pelos instrumentos e pela convivência democrática, seja porque
consideram-nos ineficientes para o alcance dos seus objetivos, seja porque são
intrinsecamente favoráveis a algum tipo de ordenamento autoritário ou
ditatorial da sociedade.
E essa é a razão pela qual, todos aqueles que, de alguma
forma, agem para desestabilizar a democracia merecem ser desmascarados, porque
a democracia atual, mesmo com todas as suas imperfeições e lacunas, é a maior
conquista que os brasileiros conseguiram em séculos de enormes sacrifícios e
lutas por uma sociedade mais livre, mais justa e mais igual.
Traçar paralelos entre a ação dos atuais Black Blocs e a
juventude que se enfrentava com a polícia nos tempos da ditadura não tem o
menor cabimento. Primeiro porque naquele tempo as balas não eram de borracha.
Segundo porque os jovens que se enfrentavam nas ruas lutavam pelo direito de se
manifestar pacificamente, terceiro, seu alvo nunca foi gratuitamente o
patrimônio público ou de terceiros e, por último, a polícia daqueles tempos
estava a serviço de uma ditadura militar e não de governos eleitos pelo voto e,
consequentemente, passíveis de cobrança caso ajam indevidamente no uso da força
policial.
A Constituição Brasileira e as liberdades públicas
consagradas, onde desaguam os direitos e deveres de todos os cidadãos e
cidadãs, não podem ser objeto de tergiversação. Defendê-las, estendê-las e
fazer avançar a convivência democrática é sempre a tarefa mais revolucionária
de todas, porque a democracia, como exercício do contraditório, é a própria e
insubstituível condição para que as demandas populares, a luta contra as
injustiças e as transformações sociais não somente avancem, como se consolidem.
Fora desse entendimento, todo e qualquer comportamento que solapa as bases
dessa convivência, não passa de provocação e ato de intolerância. E isso nós já
vimos antes.
(*) Anivaldo Miranda é jornalista e Mestre em Meio Ambiente
e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal de Alagoas.
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