Foto: João Paulo Farias
Fabiana Moraes - Jornal do Commercio -
Edição de domingo 14 de julho de 2013
fmoraes@jc.com.br
"Dizem que essa é a terra da liberdade, mas que liberdade é essa que eu não posso nem melhorar o lugar onde vivo?". Seu Louro, nome pelo qual Benoino Ferreira de Moraes, 59 anos, é conhecido, abre a porta da casa e aponta para o chão de terra. Comprou material para fazer um piso novo mas, quando o caminhão chegou com a areia, o guarda que permite ou não acesso de veículos até a sua residência barrou a entrada. Além da sala sem piso, os quartos estão sem reboco e o banheiro é precário. Funciona fora da residência, apesar de o comerciante e pedreiro ter iniciado um interno. Nunca terminou. Foi impedido pela Justiça.
Seu Louro faz parte de uma das 16 famílias que moram na Serra da Barriga, em União dos Palmares, Alagoas. Ali funciona o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, dedicado a evocar o local onde existiu, durante quase cem anos (entre o final dos 1500 e 1695), a maior resistência negra no período da escravidão. Estima-se que 20 mil pessoas viveram ali, e não apenas negros - mais índios e brancos procurados pelas forças repressivas de então (há pesquisadores que falam em 35 mil habitantes). Espalhavam-se por dez aldeias. A serra onde vive o comerciante era considerada a "capital" da República dos Palmares, como o quilombo também é denominado.
Ele comemora o fato de morar em um local de natureza privilegiada, longe da poluição e da violência e de inestimável valor histórico - mas os contínuos constrangimentos pelos quais vem passando nascem justamente por sua presença naquela área, onde chegou há 20 anos. Conta que sua família não foi questionada durante muito tempo. Pelo contrário: sempre foi vista como uma espécie de "salvadora" dos turistas que vão até a Serra e, no terraço da casa simples, são servidos de tapiocas e beijus, além de café e refrigerante. Lá também são oferecidos almoços, feitos por encomenda. O "salvadora" explica-se: como o único restaurante construído no local(o Kúuku-Wáana) só funciona praticamente uma vez ao ano, no mês de novembro, quando celebra-se o Dia da Consciência Negra (20), não há outro local para matar a fome a não ser na casa de Seu Louro.
Foi o próprio que, ao ver o carro de reportagem, aproximou-se para falar sobre sua situação ali. Conta que criou sete filhos no local, todos eles já adultos e nenhum vivendo mais naquele lar. Conta que plantava macaxeira, milho e laranja, mas precisou abandonar as culturas por conta das novas regras de preservação e recuperação da mata (que já foi bastante castigada, por isso o impedimento de roças). Que não tem água em casa desde dezembro. Que, quando os turistas chegam e pedem para usar o banheiro, ele diz que não pode permitir o acesso, mas é porque não tem água mesmo. "Meus vizinhos que são idosos... eu fico com pena, fico mesmo. Eles precisam ir buscar água longe, não podem ter um banheiro dentro de casa, é perigoso", diz, apontando para a pequena residência de um senhor chamado Cícero Leopoldino, que não estava na casa no momento em que a reportagem visitava o parque.
A permanência das famílias que residem no platô da Serra começou a ser questionada de maneira enfática a partir do final de 2011, depois que a Polícia Federal realizou uma vistoria no local para checar se havia desmatamento. Foram três dias de inspeção. No ano seguinte, uma ação do Ministério Público Federal(autoria da procuradora da República Niedja Kaspary) apontou irregularidades que teriam sido identificadas em uma análise realizada a partir de 2007, ano em que o MPF solicitou inquérito para apurar denúncias contra crimes ambientais - as famílias que vivem na Serra da Barriga seriam as autoras das contravenções. Vale lembrar que o local foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional(Iphan) em 1986 (já o Parque Memorial foi implantado em 2007, justamente quando PF iniciou investigação). Por isso, é curioso que, mais de 20 anos depois do tombamento, é que a presença das famílias seja vista como um impedimento para a preservação.
"LEI É LEI"
Diretor de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro da Fundação Palmares (autarquia federal responsável pelo Parque Memorial), Alexandro Reis adota o discurso do "lei é lei" e diz que a reintegração de posse da área para o Iphan é uma ação da Justiça Federal que precisa ser cumprida.
"As famílias que viviam ali na época do tombamento foram indenizadas. O parque é um patrimônio do País... É claro que não vamos deixar que elas saiam de todo jeito, nós precisamos verificar para onde vão, como vão... Não adianta apenas despejar as pessoas." Assim, transfere para a PF o impedimento da feitura do prosaico piso da sala de Seu Louro que, com a possibilidade de sair da Serra da Barriga, não pode realizar benfeitorias no seu imóvel- embora, curioso, ele e seu pequeno restaurante sempre tenham sido atração e apoio para quem vai até o Parque. É possível inclusive encontrar foto e matéria sobre o pedreiro e comerciante no próprio site da Fundação Palmares, como a publicada no dia 16/11/2010, na qual ele aparece processando mandioca na casa de farinha (em http://www.palmares.gov.br/563-2/).
O não funcionamento do equipamento, aliás, é motivo lamentação do comerciante. "Antes, quando eu podia usar a casa de farinha, conseguia vender a tapioca por R$ 1. Agora não podemos mais, porque é só para os turistas verem... eu tenho que comprar a farinha pronta", conta Seu Louro, que hoje cobra R$ 2 pela tapioca. Outros moradores da área também usavam a moenda. "A casa de farinha faz parte do memorial. É possível deixar que as pessoas sentem nas cadeiras expostas em um museu? É a mesma coisa", diz Alexandro Reis.
A diferença é que, como mostra a experiência dos moradores, o equipamento era utilizado para sobrevivência - como um dia foi usado pelo moradores do Quilombo dos Palmares - não para mera contemplação. Talvez, inclusive turisticamente, fosse mais interessante ver a casa de farinha realmente sendo utilizada.
Só quem chegou antes poderá ficar
O diretor de Proteção ao Patrimônio Afro Brasileiro da Fundação Palmares, Alexandro Reis, diz que algumas das famílias que hoje pedem para continuar na Serra chegaram após o tombamento - apenas aquelas que estavam ali antes poderiam, em tese, ser mantidas. Seu Louro, no caso, diz ter chegado há 20 anos, ou seja, bem depois do tombamento. Questionado porque foi então permitida a construção de várias casas quando a Serra da Barriga (230 hectares) já era posse do Iphan, Reis diz: "É uma pergunta que eu gostaria de poder lhe responder".
Atualmente, o parque, que tem verba anual de manutenção de R$ 500 mil, recebe uma média de 1.200 visitantes ao mês, segundo o diretor. O acesso é gratuito. Grande parte dos que vão ao local são estudantes e pesquisadores.
O potencial turístico do local é enorme, mas pouco explorado - uma exploração que poderia ter molde sustentável e com propósito de gerar renda para a própria população remanescente de quilombolas. O restaurante fechado durante todo o ano é um exemplo. A princípio, ele deveria funcionar, em parceria com o Senac, também como escola (uma licitação de R$ 96 mil para compra de equipamentos foi feita em 2009).
"No início ele foi mantido aberto, mas o número de visitantes não compensava os custos", diz Alexandre Reis. Segundo ele, os mais de mil visitantes ao mês também não precisam necessariamente se alimentar no local (embora quem venha de Maceió, por exemplo, precise superar 80 quilômetros de estrada até União e mais 6 quilômetros até o alto da Serra).
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