Olívia de Cássia - jornalista
Papai
teve tuberculose nos ossos e já estava desenganado dos médicos, quando eu ainda
era criança. Ele fazia consultas com o doutor Ib Gatto Falcão que, segundo meu pai, já àquela época
tinha fama de ser muito bom no que fazia. Doutor Ib atestou que a tuberculose
nos ossos que tinha acometido meu pai não tinha cura. Meu pai fumava nessa
época e deixou por esse motivo.
Ele foi ao Recife consultar outros médicos,
viagem que sempre fazia, fosse para médico ou compras; era mais fácil viajar
para Recife do que para Maceió, pois as estradas eram de barro e perigosas.
Dessa vez ele foi de avião. Os médicos de Pernambuco desenganaram meu pai que
ficou, por alguns meses, andando agachado. Foi quando, segundo ele contava, fez
uma promessa à santa Maria Madalena e ficou curado. Desde então sua fé na santa
aumentou e nunca mais deixou de ir à igreja, todo o final de semana. Passou a
ser integrante da comunidade Vicentina da Igreja Católica de União dos
Palmares.
A
devoção de meu pai pela santa era tão grande que fiquei sabendo por meu primo
Edvaldo Siqueira, que mora no Rio de Janeiro, que meu pai quando soube que a
antiga Igreja Matriz de Santa Maria Madalena ia ser demolida, numa reunião com
os padres canadenses onde se aprovou a derrubada do prédio, ele teria comparecido
de arma em punho, tentando impedir aquele ato. Infelizmente meu pai não foi
ouvido e o que resta da igreja hoje, em União, são algumas telhas antigas que a
historiadora e jornalista Maria Mariá guardou em seu antigo acervo. Se bem que
depois da reforma da Casa eu nem sei mais se ainda estão por lá.
Eu
acompanhava vovó Olívia às missas de domingo porque ela tinha catarata e
dificuldade em enxergar, ou ia com meu pai e toda a nossa família. Mamãe
contava que num dia de procissão de santa Maria Madalena operou-se outro
milagre.
Dona Antônia dizia que meu irmão Petrúcio era muito pequeno e ela o
levou à procissão. Estava com ele sentado no muro da igreja quando o andor de
Nossa Senhora passou e então, segundo relato de mamãe, meu irmão pequenininho disse:
“Bênção, mamãe do céu, faça com que meu pai compre uma casa pra gente morar”. E
segundo ela, o milagre se fez e meu pai conseguiu comprar várias casas que
tivemos em União, que alugava na Rua da Ponte, além da nossa casa, na Tavares
Bastos. Pode ter sido coincidência, mas a fé do meu pai era muito grande.
Absorvi dele o interesse por política, embora hoje não tenha o mesmo
engajamento que já tive em época da faculdade. Com o tempo e as decepções que
fui colecionando no pequeno período de militância partidária, me afastei dos
antigos companheiros.
No entanto, não deixei de atuar politicamente e, em
processo eleitoral, não consigo ficar de fora; de uma forma ou de outra acabo
desenvolvendo alguma atividade política. Quando se instalou a ditadura militar,
os partidos de esquerda ficaram na clandestinidade e passaram a existir,
oficialmente, apenas a Arena (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB (Movimento
Democrático Brasileiro). Meu pai, que durante um tempo votou na Arena, passou a
simpatizar com os candidatos do MDB, que reunia todas as forças da oposição ao
regime.
Não é que ele tivesse tomado consciência política do que
estivesse se passando no País, pelo menos isso ele nunca deixou transparecer
para nós. Papai era até um pouco medroso tanto que, logo quando se instalou o
regime militar, ele não era de deixar que a gente saísse, pois éramos muito
pequenos e não entendíamos o que se passava no Brasil naquele tempo.
Seu João
Jonas costumava viajar para Maceió, nas estradas de barro, enfrentando
atoleiros, pontes de madeira e todas as atribulações nas estradas, para marcar
os bingos no Trapichão, que naquela época ainda não era um estádio propriamente
dito.
O maior sonho do meu pai era possuir um carro, mas só fomos ter o nosso
primeiro Fusquinha, quando ele presenteou meu irmão Petrônio em meados de 1981.
Ele nunca aprendeu a dirigir nem possuiu seu próprio carro, porque adoeceu e
não pode mais andar, ficou inválido em consequência do agravamento da ataxia
spinocerebellar.
Para marcar os bingos em Maceió, papai nos deixava em União,
pequenos, com mamãe, e nem pensava no que pudesse nos acontecer. Mamãe, por sua
vez, tinha como sua defesa um pequeno revólver, calibre 32, chamado balaú, que
ela utilizava para matar os cassacos, que costumavam atacar e comer as galinhas
de capoeira que ela criava no quintal da nossa casa, que nessa época era nos
fundos da mercearia. De vez em quando ela matava um bicho daqueles.
É um animal
que tem um olhar muito sinistro e eu ficava escondidinha, atrás da porta,
quando ela se punha a caçá-los, à noite. Afora estas viagens de papai para
jogar nos bingos, em Maceió, ele costumava ir a Garanhuns fazer as compras em
grosso para abastecer a mercearia ou bodega, como ele chamava. Foi em
Garanhuns, na loja Ferreira Costa, que papai comprou nosso primeiro aparelho de
TV Phillips, em preto-e-branco. Fomos a primeira família da Rua da Ponte a ter
televisão em casa. Meu irmão mais velho, muito esperto e maroto, começou a
cobrar ingresso dos meninos da rua, para entrar lá em casa.
A sala de janta, local onde ficava a televisão, não tinha
espaço de tanto menino e menina que dividiam conosco a emoção de ver as
primeiras imagens na telinha: as novelas, os programas de auditório da Jovem
Guarda, e os filmes de Zorro, Perdidos no Espaço, Durango Kid, Jinnie é um
Gênio, entre outros. Mas as imagens que chegavam até nós eram de péssima
qualidade, cheias de pequenos pontinhos iluminados, que deixavam a imagem quase
imperceptível. A gente se esforçava para decifrar qual o ator ou atriz estava
no vídeo. E quando terminavam as “sessões”, momento em que mamãe anunciava que
íamos dormir, a sala ficava toda suja de areia e papel de confeito e mamãe ia
fazer a limpeza, reclamando muito, antes de nos colocar na cama.
Papai
gostava de ir à Praça Antenor de Mendonça Uchôa, ou ficava no viaduto próximo à
praça, à noite, depois da janta, onde encontrava os amigos e conhecidos e
tomava conhecimento das novidades da cidade ou do País. Essa rotina ele viveu
durante muitos anos, antes de ficar inválido. Seu João ia às cinco da manhã
abrir a bodega, para que desse tempo de vender o pão do café da manhã dos
fregueses da Rua da Ponte.
Antes da instalação dos supermercados e lojas de
conveniências nas cidades do interior, as pessoas costumavam comprar pão e
fazer as compras que hoje são feitas em supermercados nas mercearias. Seu João
Jonas passava o dia todo ali. Na hora do almoço ia para casa tomar banho e
comer, depois voltava sem tirar sua sesta, para o expediente na mercearia, até
as sete ou oito horas da noite, conforme fosse o movimento.
Meu pai só deixou de fazer os seus passeios à praça e de ir
à nossa mercearia, quando começou a levar muitas quedas e não pôde mais andar.
Depois que eu fui morar com meu companheiro e compramos carro, nos fins de
semana nós dávamos um passeio com ele pelos locais que costumava frequentar.
Papai ficava muito contente com isso. Gostava também de tomar uma cervejinha e
até bem doente, aos domingos, fazíamos a sua vontade. Ele bebia dois copos de
cerveja como se tivesse tomando água saboreando e tomando tudo de uma vez. Eu
sempre o acompanhava na bebida.
Meu pai era o eleitor mais fanático que eu já conheci. Era o
eleitor número um do nosso primo Afrânio Vergetti de Siqueira, que foi prefeito
da cidade por três vezes e deputado estadual idem. Já bem doente, com a fala já
comprometida pela ataxia, ele pedia para que nós avisássemos a Afrânio que não
estava bem. E reclamava quando nosso primo não ia visitá-lo. Seu João Jonas
pediu para que, quando morresse, Afrânio Vergetti fosse a primeira pessoa a ser
avisada, e que colocasse o carro de som da Prefeitura para anunciar o seu
falecimento. E assim foi feito.
Quando meu pai morreu, eu perdi um grande amigo; nas minhas
idas a União para visitá-lo, eu ficava sentada em sua cama conversando e
contando-lhe as novidades. Ele rememorava os fatos da sua infância e juventude,
me dava a sua opinião a respeito do que eu estivesse fazendo; achava que trabalhar
em jornal e escrever não dava futuro pra ninguém, porque não rendia dinheiro
suficiente para a sobrevivência, mas ele não era de me desestimular. Nos finais
de semana quando eu ia lhe ver, eu levava jornais, pois ele gostava muito de
ler.
Perdi muitos entes queridos e talvez isso tenha influenciado
na minha formação, naquilo que sou hoje. Minhas perdas foram muitas, e talvez
seja por isso que não valorizo demais os bens materiais. Nesse aspecto, eu
tinha muito conflito com mamãe, que era mais materialista do que papai, talvez
porque ela tivesse passado mais dificuldades do que eu. Mamãe tinha muita fibra
e era quem dominava a nossa casa. Aprendi com papai que mais vale o caráter da
pessoa e dormir com a cabeça tranquila no travesseiro do que ter muito dinheiro
e não viver em paz com a consciência. Coisas simples, assimilada por pessoa
humilde como meu pai.
Não que eu não goste de dinheiro, mas ele me serve apenas
para suprir os bens necessários para o mínimo que se pode ter de conforto; se
eu tiver o suficiente para pagar minhas contas, comprar os meus livros, e o
necessário para me manter com conforto, já me dou por satisfeita. Tenho os meus
sonhos de consumo, afinal vivo num sistema capitalista, mas não sou do tipo que
vive no empenho, apenas, de ganhar dinheiro.
Esta foi a lição que eu aprendi do meu querido pai a quem eu rendo todas
as minhas homenagens.
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