sábado, 16 de agosto de 2014

A fé e o fanatismo político do meu pai

Olívia de Cássia - jornalista

 Papai teve tuberculose nos ossos e já estava desenganado dos médicos, quando eu ainda era criança. Ele fazia consultas com o doutor Ib Gatto  Falcão que, segundo meu pai, já àquela época tinha fama de ser muito bom no que fazia. Doutor Ib atestou que a tuberculose nos ossos que tinha acometido meu pai não tinha cura. Meu pai fumava nessa época e deixou por esse motivo. 

Ele foi ao Recife consultar outros médicos, viagem que sempre fazia, fosse para médico ou compras; era mais fácil viajar para Recife do que para Maceió, pois as estradas eram de barro e perigosas. Dessa vez ele foi de avião. Os médicos de Pernambuco desenganaram meu pai que ficou, por alguns meses, andando agachado. Foi quando, segundo ele contava, fez uma promessa à santa Maria Madalena e ficou curado. Desde então sua fé na santa aumentou e nunca mais deixou de ir à igreja, todo o final de semana. Passou a ser integrante da comunidade Vicentina da Igreja Católica de União dos Palmares. 

A devoção de meu pai pela santa era tão grande que fiquei sabendo por meu primo Edvaldo Siqueira, que mora no Rio de Janeiro, que meu pai quando soube que a antiga Igreja Matriz de Santa Maria Madalena ia ser demolida, numa reunião com os padres canadenses onde se aprovou a derrubada do prédio, ele teria comparecido de arma em punho, tentando impedir aquele ato. Infelizmente meu pai não foi ouvido e o que resta da igreja hoje, em União, são algumas telhas antigas que a historiadora e jornalista Maria Mariá guardou em seu antigo acervo. Se bem que depois da reforma da Casa eu nem sei mais se ainda estão por lá.

Eu acompanhava vovó Olívia às missas de domingo porque ela tinha catarata e dificuldade em enxergar, ou ia com meu pai e toda a nossa família. Mamãe contava que num dia de procissão de santa Maria Madalena operou-se outro milagre. 

Dona Antônia dizia que meu irmão Petrúcio era muito pequeno e ela o levou à procissão. Estava com ele sentado no muro da igreja quando o andor de Nossa Senhora passou e então, segundo relato de mamãe, meu irmão pequenininho disse: “Bênção, mamãe do céu, faça com que meu pai compre uma casa pra gente morar”. E segundo ela, o milagre se fez e meu pai conseguiu comprar várias casas que tivemos em União, que alugava na Rua da Ponte, além da nossa casa, na Tavares Bastos. Pode ter sido coincidência, mas a fé do meu pai era muito grande.
                
Absorvi dele o interesse por política, embora hoje não tenha o mesmo engajamento que já tive em época da faculdade. Com o tempo e as decepções que fui colecionando no pequeno período de militância partidária, me afastei dos antigos companheiros. 

No entanto, não deixei de atuar politicamente e, em processo eleitoral, não consigo ficar de fora; de uma forma ou de outra acabo desenvolvendo alguma atividade política. Quando se instalou a ditadura militar, os partidos de esquerda ficaram na clandestinidade e passaram a existir, oficialmente, apenas a Arena (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Meu pai, que durante um tempo votou na Arena, passou a simpatizar com os candidatos do MDB, que reunia todas as forças da oposição ao regime.

Não é que ele tivesse tomado consciência política do que estivesse se passando no País, pelo menos isso ele nunca deixou transparecer para nós. Papai era até um pouco medroso tanto que, logo quando se instalou o regime militar, ele não era de deixar que a gente saísse, pois éramos muito pequenos e não entendíamos o que se passava no Brasil naquele tempo.

 Seu João Jonas costumava viajar para Maceió, nas estradas de barro, enfrentando atoleiros, pontes de madeira e todas as atribulações nas estradas, para marcar os bingos no Trapichão, que naquela época ainda não era um estádio propriamente dito. 

O maior sonho do meu pai era possuir um carro, mas só fomos ter o nosso primeiro Fusquinha, quando ele presenteou meu irmão Petrônio em meados de 1981. Ele nunca aprendeu a dirigir nem possuiu seu próprio carro, porque adoeceu e não pode mais andar, ficou inválido em consequência do agravamento da ataxia spinocerebellar. 

Para marcar os bingos em Maceió, papai nos deixava em União, pequenos, com mamãe, e nem pensava no que pudesse nos acontecer. Mamãe, por sua vez, tinha como sua defesa um pequeno revólver, calibre 32, chamado balaú, que ela utilizava para matar os cassacos, que costumavam atacar e comer as galinhas de capoeira que ela criava no quintal da nossa casa, que nessa época era nos fundos da mercearia. De vez em quando ela matava um bicho daqueles.

 É um animal que tem um olhar muito sinistro e eu ficava escondidinha, atrás da porta, quando ela se punha a caçá-los, à noite. Afora estas viagens de papai para jogar nos bingos, em Maceió, ele costumava ir a Garanhuns fazer as compras em grosso para abastecer a mercearia ou bodega, como ele chamava. Foi em Garanhuns, na loja Ferreira Costa, que papai comprou nosso primeiro aparelho de TV Phillips, em preto-e-branco. Fomos a primeira família da Rua da Ponte a ter televisão em casa. Meu irmão mais velho, muito esperto e maroto, começou a cobrar ingresso dos meninos da rua, para entrar lá em casa. 

A sala de janta, local onde ficava a televisão, não tinha espaço de tanto menino e menina que dividiam conosco a emoção de ver as primeiras imagens na telinha: as novelas, os programas de auditório da Jovem Guarda, e os filmes de Zorro, Perdidos no Espaço, Durango Kid, Jinnie é um Gênio, entre outros. Mas as imagens que chegavam até nós eram de péssima qualidade, cheias de pequenos pontinhos iluminados, que deixavam a imagem quase imperceptível. A gente se esforçava para decifrar qual o ator ou atriz estava no vídeo. E quando terminavam as “sessões”, momento em que mamãe anunciava que íamos dormir, a sala ficava toda suja de areia e papel de confeito e mamãe ia fazer a limpeza, reclamando muito, antes de nos colocar na cama. 

Papai gostava de ir à Praça Antenor de Mendonça Uchôa, ou ficava no viaduto próximo à praça, à noite, depois da janta, onde encontrava os amigos e conhecidos e tomava conhecimento das novidades da cidade ou do País. Essa rotina ele viveu durante muitos anos, antes de ficar inválido. Seu João ia às cinco da manhã abrir a bodega, para que desse tempo de vender o pão do café da manhã dos fregueses da Rua da Ponte. 

Antes da instalação dos supermercados e lojas de conveniências nas cidades do interior, as pessoas costumavam comprar pão e fazer as compras que hoje são feitas em supermercados nas mercearias. Seu João Jonas passava o dia todo ali. Na hora do almoço ia para casa tomar banho e comer, depois voltava sem tirar sua sesta, para o expediente na mercearia, até as sete ou oito horas da noite, conforme fosse o movimento.

Meu pai só deixou de fazer os seus passeios à praça e de ir à nossa mercearia, quando começou a levar muitas quedas e não pôde mais andar. Depois que eu fui morar com meu companheiro e compramos carro, nos fins de semana nós dávamos um passeio com ele pelos locais que costumava frequentar. Papai ficava muito contente com isso. Gostava também de tomar uma cervejinha e até bem doente, aos domingos, fazíamos a sua vontade. Ele bebia dois copos de cerveja como se tivesse tomando água saboreando e tomando tudo de uma vez. Eu sempre o acompanhava na bebida.

Meu pai era o eleitor mais fanático que eu já conheci. Era o eleitor número um do nosso primo Afrânio Vergetti de Siqueira, que foi prefeito da cidade por três vezes e deputado estadual idem. Já bem doente, com a fala já comprometida pela ataxia, ele pedia para que nós avisássemos a Afrânio que não estava bem. E reclamava quando nosso primo não ia visitá-lo. Seu João Jonas pediu para que, quando morresse, Afrânio Vergetti fosse a primeira pessoa a ser avisada, e que colocasse o carro de som da Prefeitura para anunciar o seu falecimento. E assim foi feito.

Quando meu pai morreu, eu perdi um grande amigo; nas minhas idas a União para visitá-lo, eu ficava sentada em sua cama conversando e contando-lhe as novidades. Ele rememorava os fatos da sua infância e juventude, me dava a sua opinião a respeito do que eu estivesse fazendo; achava que trabalhar em jornal e escrever não dava futuro pra ninguém, porque não rendia dinheiro suficiente para a sobrevivência, mas ele não era de me desestimular. Nos finais de semana quando eu ia lhe ver, eu levava jornais, pois ele gostava muito de ler.

Perdi muitos entes queridos e talvez isso tenha influenciado na minha formação, naquilo que sou hoje. Minhas perdas foram muitas, e talvez seja por isso que não valorizo demais os bens materiais. Nesse aspecto, eu tinha muito conflito com mamãe, que era mais materialista do que papai, talvez porque ela tivesse passado mais dificuldades do que eu. Mamãe tinha muita fibra e era quem dominava a nossa casa. Aprendi com papai que mais vale o caráter da pessoa e dormir com a cabeça tranquila no travesseiro do que ter muito dinheiro e não viver em paz com a consciência. Coisas simples, assimilada por pessoa humilde como meu pai.

Não que eu não goste de dinheiro, mas ele me serve apenas para suprir os bens necessários para o mínimo que se pode ter de conforto; se eu tiver o suficiente para pagar minhas contas, comprar os meus livros, e o necessário para me manter com conforto, já me dou por satisfeita. Tenho os meus sonhos de consumo, afinal vivo num sistema capitalista, mas não sou do tipo que vive no empenho, apenas, de ganhar dinheiro.  Esta foi a lição que eu aprendi do meu querido pai a quem eu rendo todas as minhas homenagens.

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