segunda-feira, 20 de julho de 2015

Revisitando Saramago

Olívia de Cássia - jornalista

Acordo às três horas da matina, com o rosnado de Malu, que não permite a subida do gato Jotinha à cama. Atenta aos ruídos da noite, sua audição se torna mais afiada, proporcionada pelo silêncio da madrugada.
Resolvo retomar a leitura de Saramago, não é um texto muito fácil, principalmente para quem não tem o costume de ler o autor. Ensaio sobre a lucidez é um romance de José Saramago, fazendo o jogo de claro-escuro penetrar em impasses contemporâneos.
“Num país qualquer, num dia chuvoso, poucos eleitores vindos de Lisboa após grandes cheias compareceram para votar, durante a manhã. As autoridades eleitorais, preocupadas, chegaram a supor que haveria uma abstenção gigantesca. À tarde, quase no encerramento da votação, centenas de milhares de eleitores não compareceram aos locais de votação”
Bom o texto não é fácil, confesso, apesar de estar acostumada a várias leituras, principalmente porque os parágrafos e os capítulos são imensos. Malu aniversaria hoje e apesar de ralhar com seus rosnados, concedo-lhe a permissão da transgressão de arengar com Jotinha, explicando a ela que ele é ‘seu irmão’ do coração.
Nessa revisita a Saramago a fome desperta, desço para traçar uma banana no meio da madrugada e resolvo escrever e colocar minhas inquietações. Ligo a TV e está passando um filme sobre guerras.
Tudo conectado. A humanidade ainda não aprendeu a viver com o contraditório. Algo se move do meu lado: os gatos me rodeiam, como se quisessem saber o motivo de eu ter saído da cama no meio da noite para vir escrever.
Mas voltando ao nosso tema inicial, voltar a visitar Saramago me instiga a retomar a leitura dos clássicos que deixei na estante há muitos anos. Tenho alguns exemplares maravilhosos, além dos pensadores, que adormecem na estante de metal, como que me indagando em qual momento vou reabri-los e ler.
“Formaram-se filas quilométricas, e tudo pareceu normal. Mas, para desespero das autoridades eleitorais, houve quase setenta por cento de votos em branco. Uma catástrofe. Evidentemente que as instituições, partidos políticos e autoridades, haviam perdido a credibilidade da população”, diz Saramago em seu ensaio.
Nessa leitura a gente vai percebendo alguns aspectos que estão atuais. “O voto em branco fora uma manifestação inocente, um desabafo, a indignação pelo descalabro praticado por políticos pertencentes aos partidos da direita, da esquerda e do meio. Políticos de partidos diferentes, mas de atuações iguais, usufruindo de privilégios que afrontavam a população. Os eleitores estavam cansados, revoltados”.
Qualquer semelhança com a atualidade será mera coincidência¿ “Os governantes, sentindo-se ameaçados, trataram de agir em nome da ordem, espiando, mentindo, torturando, explodindo, desesperando”, diz o autor.
E ele prossegue... “Alguns que viveram os horrores da cegueira branca, novamente sofreram. Os governantes, preocupados em salvar a própria pele, em garantir o poder, não perceberam que a cegueira branca de outrora, demonstrativo de que há muito o homem estava cego, tinham paralelo com o voto branco de agora, indicativo de que a população não perdera a lucidez. Estranhamente, não houve uma mobilização para o fato”.
O texto de Saramago parece de agora e recomendo a leitura, assim como outros autores de tão fino calibre. Malu e os gatos aquietaram-se. O filme ainda não acabou  e eu vou voltar à leitura até que o sono chegue novamente, pois preciso acordar cedo.

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