Intelectuais e estudantes também
vão editar um livro contando
o processo de desocupação
e demolição da Vila de Pescadores de Jaraguá
Olívia de Cássia - Repórter
Representantes do movimento Abrace a Vila, grupo que defende os moradores da Vila dos Pescadores de Jaraguá, disseram que vão construir um memorial para registrar a história da resistência dos moradores e do local, que tinha mais de 60 anos.
Os intelectuais, com a ajuda dos estudantes, disseram que vão editar um livro contando todo o processo de desocupação e demolição da Vila, que aconteceu no dia 17 e terminou no dia 19 último.
O encontro ocorrido no sábado, 20, contou também com a presença de estudantes, Diretório Central de Estudantes (DCE-UFAL), de professores da Universidade Federal de Alagoas, lideranças e simpatizantes da causa, que se reuniram para falar sobre a ação da Prefeitura.
O professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) Parmênides Justino, do curso de Ciências Sociais, falou à reportagem que acompanha a comunidade da Vila dos Pescadores há anos e vem estudando esse processo de resistência deles.
No local, cerca de 120 famílias foram despejadas e o professor comenta que fez sua tese de mestrado em 2005 abordando o dia a dia da vila. Parmênides Justino conta que a universidade tinha uma parceria com a vila e o Ministério da Cultura também e disse que abordará a questão na tese de doutorado que está finalizando.
“Vai ser o fechamento da minha tese, estou fazendo doutorado na Unicamp e já cheguei à última frase: ‘a vila acabou, mas a resistência continua’”, observou. Segundo o professor, o poder constituído destruiu a parte física da vila, mas a memória, não. “Eles acabaram com o Quilombo dos Palmares, mas a consciência negra, não”, lembrou.
Segundo Parmênides Justino, os moradores da Vila dos Pescadores de Jaraguá, em Maceió, desenvolveram ao longo dos anos vários níveis de consciência. “Por isso que estou falando em resistência. A Prefeitura está comemorando a derrubada da vila que eles chamam de favela, só que eles destruíram a parte material, mas as pessoas continuam, inclusive aquelas que eles despejaram”, analisa.
O estudioso conta também que várias famílias estão dispersas na cidade, em casas de parentes: “Veja bem, casa de pobre já é pequena, ainda mais com outras famílias juntas, estão imprensados com os móveis, pelo menos no abrigo tem cerca de 30 famílias, essas famílias eu estou colhendo documentos, dos maios antigos, que a gente vai fazer um grande memorial, para mostrar o contrário do que a prefeitura mostra”.
Parmênides Justino desabafa observando que a Prefeitura de Maceió passa a imagem para a sociedade, por meio da mídia, que os pescadores e marisqueiras eram invasores e traficantes perigosos, mas ele destaca que essas pessoas são moradores antigos; alguns tinham vinte a quarenta anos de moradia no local “e estão sendo expulsos como invisíveis, porque como a prefeitura diz que tirou traficantes e invasores, essas pessoas não existem na visão deles, só que elas existem”, ressalta.
‘Meta agora é provar que moradores foram aniquilados oficialmente’
Segundo o professor, a meta agora é exatamente provar que essas pessoas existem e oficialmente foram aniquiladas. “Como no esquema de clientelismo e corrupção eles não foram contemplados com apartamentos, aí eles ficaram largados lá e a prefeitura trabalhou uma forma de aniquilar a identidade deles, para que a sociedade não tenha conhecimento do crime que eles cometeram”, avalia.
O sociólogo pontua que a ação da prefeitura foi truculenta e violou todos os direitos dos cidadãos: “Em nome da lei violaram os direitos e a minha dor maior como acadêmico é primeiro resgatar a memória dessa luta dos invisíveis, porque são pessoas simples, boas, que conheço há anos e nossa grande preocupação é resgatar a humanidade delas; depois disso é manter a memória delas; criar um memorial, uma página na internet, insistir na memória”, ressalta.
Segundo o professor Parmênides Justino, que também é psicólogo, durante a demolição, encontrou um idoso que não sabia para onde ir, estava desorientado e pensava que fossem levá-lo para um asilo. “Eu perguntei para onde ele ia e ele informou: ‘parece que vão me levar para um asilo’. Perguntei pelos móveis e ele disse que tinham levado. Para você ter uma ideia da violência praticada contra essas pessoas”, pontua.
Além de idosos abandonados, dormindo no chão, nos abrigos que a prefeitura destinou para alojar os moradores da Vila de Pescadores, o professor destaca uma série de problemas que não foram avaliados, como os locais insalubres e sem infraestrutura para abrigar seres humanos.
“Um paciente com transtorno foi levado para o abrigo e teria que ter assistência especial, previamente cadastrado, as pessoas do abrigo não aceitaram a presença dele, que estava muito nervoso, e por sorte nós tínhamos uma série de pessoas do consultório do grupo de rua, que inclusive estão sendo mal vistos pela prefeitura”, explica.
Dentre a diversidade de problemas apresentados, o professor Parmênides Justino aponta ainda que as crianças da vila estão sem escola. “Pela lei essas crianças têm que ser cadastradas, providenciadas escola, elas estão num abrigo, longe da escola, o aluguel social é de 200 reais, não vai dar para eles alugarem casa aqui na região, na periferia fica em torno de 40 quilômetros”, observa.
Outro incidente acontecido durante a demolição das casas apontado pelo professor foi o de uma senhora entrou em trabalho de parto “e pela lei tem que ter tratamento especial para ela”, entre outras questões elencadas pelo professor.
Para que o pessoal pudesse ter apoio psicológico ele acrescenta que foi preciso acionar o pessoal dos direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-AL), na pessoa de Daniel Nunes, para que intervisse na questão, diante de tantos problemas encontrados. “Eu tenho foto e documentos de tudo”.
Parmênides Justino critica também a falta de preparação dos funcionários da prefeitura e dos oficiais de Justiça e diz que os moradores da vila ficaram sabendo da ação pelas redes sociais.
“Também houve abuso de autoridade: a reintegração de posse era do terreno, mas as casas, o tijolo, a madeira, eram de propriedade dos moradores e não da União; o oficial de Justiça estava ameaçando dar voz de prisão às pessoas que estavam levando suas portas e telhas, janelas, que para eles é o bem deles, lutaram por aquilo e eles estavam abusando da autoridade”, denuncia.
Defesa dos pesquisadores sempre foi que houvesse inclusão dos pescadores
O também professor da Ufal Daniel Vasconcelos disse que pesquisa a Vila dos Pescadores desde a sua graduação e que a proposta dos pesquisadores que participam do movimento Abrace a Vila sempre foi pela inclusão das pessoas que realmente trabalham com a pesca e nunca foi a favelização de Jaraguá.
“Publiquei artigos que foram parte da minha monografia, que foram análise do processo de revitalização turística do bairro e desde aquela época, década de 1990 a 2000, que existem propostas que visam a permanência das pessoas que têm identidade com a pesca, com o território, entre essas propostas teve um projeto que foi premiado, do arquiteto Pascoal, baseado na sustentabilidade”, destaca.
Segundo o professor, na proposta se contemplava a permanência dos pescadores, mas o projeto não foi viabilizado. “Houve a revitalização do bairro, dos monumentos históricos, das ruas, foi retirada uma grande parte da vila, onde hoje é o estacionamento de Jaraguá, e o descaso vem ocorrendo há muito tempo”, avalia.
Daniel Vasconcelos ressalta que a defesa também é pelas pessoas que têm identidade cultural com o local. “De dez anos para cá foi criado um ponto de cultura da professora Marluce, que deu uma auxílio às crianças que ficavam ociosas no bairro, incluindo-as em atividades culturais e as coisas funcionavam. O que faltou foi uma sensibilidade do poder público, para que se pudesse ser de forma organizada e resolver o problema da favela”, avalia.
O professor da Ufal disse que a demolição foi uma solução autoritária, de higiene social. “Eles argumentam que é uma melhoria para o bairro, para as questões da violência que ocorre, apesar de existir o tráfico na comunidade sabe-se que não é maioria. Se o problema era o tráfico, que fossem atrás do traficante e não expulsar a comunidade toda”, analisa.
Ainda como argumento, Daniel Vasconcelos explica que o objetivo do movimento não é promover a miséria, como eles argumentam. “O turista quer ter contato com a identidade do local, as pesquisas apontam que existem informações de que ali poderiam estar descendentes de pessoas que fundaram a cidade”, observa.
Se fosse feito um mapeamento antropológico e genealógico, na avaliação do professor, algumas pessoas poderiam ter essa identidade, de serem descendentes dos fundadores de Maceió residindo na Vila dos Pescadores. “É uma área que merecia maior atenção; tanto do governo municipal, Iphan e outras instituições que fazem pesquisas antropológicas e visam a fomentar a preservação do patrimônio cultural e tudo isso foi demolido. A justificativa hoje é que se acabou com a violência, a favela, mas a maioria da população que é leiga acredita nisso; não sabem da proposta cultural e do que existia anteriormente”, pontua.
Daniel finaliza sua fala ressaltando que o fato que ocorreu em Maceió não é uma situação pontual: “Vem ocorrendo no mundo inteiro, como no Pelourinho, em Salvador, onde as populações negras estão sendo retiradas do local histórico; o próprio Recife antigo, onde também tem pesquisadores que têm colocado as questões de higienização social, que prejudicou a dinâmica e identidade do local e mais uma vez, em Maceió”, pontua.
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