Ela tomava o ônibus todos os dias para ir ao trabalho e não
se descuidava, apesar de às vezes pegar no sono e dormir um bom tempo, por
conta da medicação que tomava. No trajeto ia lendo, revendo paisagens ou
rememorando coisas passadas.
Não dava para evitar as lembranças de tudo aquilo que ela
viveu. Foram tantos os apelos feitos pela família para que ela não se
envolvesse naquela trama, mas não teve jeito: quando tudo tem que acontecer,
acontece.
Passados todos esses anos sobraram restos, cacos e feridas
que foram cicatrizando. Agora que tudo passou, apesar das perdas vividas,
que foram muitas, ela sente-se feliz. Por ter conseguido dar a volta por cima, por
finalmente não mais sofrer com aqueles acontecimentos passados.
Tudo não passa de lembranças que a fizeram amadurecer e
crescer, profissionalmente e como pessoa, depois de todo o sofrimento vivido. E ela vai recapitulando tudo, enquanto aquele
ônibus vai percorrendo as ruas de Maceió, preso a congestionamentos, num calor
quase insuportável.
Lá adiante sobe aquele menino dependente químico gritando: “Pessoal,
pelo amor de Deus, me ajude, estou com fome. Por favor, pessoal, eu quero comer”.
E apesar de saber que aquele rapaz vai usar o dinheiro novamente para comprar
cola de sapateiro, para se anestesiar da sua miséria humana, ela lhe oferece
uma moeda e ele agradece.
Naquele momento aquela teoria de ensinar a pescar o peixe
não vale, quando a fome bate, ela entende que tem que ser saciada. Não passou
exatamente por isso, mas sabe o quanto é ruim e desumano a vida levada por
moradores de rua e jovens dependentes de drogas, vítimas contumazes dos
traficantes, muitos deles endinheirados e cheios de poder.
Uma realidade presenciada todos os dias na sua rotina de
trabalho, que a sensibiliza e a deixa cada dia mais solidária e consciente de
seu papel social. Não dá para resolver os problemas do mundo, mas ela entende
que procura fazer a sua parte, longe de querer ser melhor do que alguém.
Naquele trajeto calorento parece que as horas não passam e
ela continua sua linha de pensamento, que vai de um extremo a outro, até pegar
no sono e sonhar que sua realidade era diferente. O ônibus atravessa a cidade:
buzinas intermináveis, o ônibus apinhado de gente.
Lá adiante sobem dois vendedores de guloseimas e mais um
pedinte e o ônibus continua seu trajeto. “Isso é um assalto”, grita um jovem
louro de cabelo tingido, de arma na mão, leva tudo que a cobradora tinha na
gaveta, incluindo seu celular.
O ônibus sobe a Ladeira do Jacintinho e os passageiros começam
a gritar. A moça tem um surto de choro e nervoso e não se controla mais. De
repente ela acorda daquele sono inquieto que tanto a perturbou. Estava na hora
de descer, era o ponto final.
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