segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

A rotina ...


Olívia de Cássia – jornalista

Ela tomava o ônibus todos os dias para ir ao trabalho e não se descuidava, apesar de às vezes pegar no sono e dormir um bom tempo, por conta da medicação que tomava. No trajeto ia lendo, revendo paisagens ou rememorando coisas passadas.

Não dava para evitar as lembranças de tudo aquilo que ela viveu. Foram tantos os apelos feitos pela família para que ela não se envolvesse naquela trama, mas não teve jeito: quando tudo tem que acontecer, acontece.

Passados todos esses anos sobraram restos, cacos e feridas que foram cicatrizando. Agora que tudo passou, apesar das perdas vividas, que foram muitas, ela sente-se feliz. Por ter conseguido dar a volta por cima, por finalmente não mais sofrer com aqueles acontecimentos passados.

Tudo não passa de lembranças que a fizeram amadurecer e crescer, profissionalmente e como pessoa, depois de todo o sofrimento vivido.  E ela vai recapitulando tudo, enquanto aquele ônibus vai percorrendo as ruas de Maceió, preso a congestionamentos, num calor quase insuportável.

Lá adiante sobe aquele menino dependente químico gritando: “Pessoal, pelo amor de Deus, me ajude, estou com fome. Por favor, pessoal, eu quero comer”. E apesar de saber que aquele rapaz vai usar o dinheiro novamente para comprar cola de sapateiro, para se anestesiar da sua miséria humana, ela lhe oferece uma moeda e ele agradece.

Naquele momento aquela teoria de ensinar a pescar o peixe não vale, quando a fome bate, ela entende que tem que ser saciada. Não passou exatamente por isso, mas sabe o quanto é ruim e desumano a vida levada por moradores de rua e jovens dependentes de drogas, vítimas contumazes dos traficantes, muitos deles endinheirados e cheios de poder.

Uma realidade presenciada todos os dias na sua rotina de trabalho, que a sensibiliza e a deixa cada dia mais solidária e consciente de seu papel social. Não dá para resolver os problemas do mundo, mas ela entende que procura fazer a sua parte, longe de querer ser melhor do que alguém.

Naquele trajeto calorento parece que as horas não passam e ela continua sua linha de pensamento, que vai de um extremo a outro, até pegar no sono e sonhar que sua realidade era diferente. O ônibus atravessa a cidade: buzinas intermináveis, o ônibus apinhado de gente.

Lá adiante sobem dois vendedores de guloseimas e mais um pedinte e o ônibus continua seu trajeto. “Isso é um assalto”, grita um jovem louro de cabelo tingido, de arma na mão, leva tudo que a cobradora tinha na gaveta, incluindo seu celular.

O ônibus sobe a Ladeira do Jacintinho e os passageiros começam a gritar. A moça tem um surto de choro e nervoso e não se controla mais. De repente ela acorda daquele sono inquieto que tanto a perturbou. Estava na hora de descer, era o ponto final.

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