segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Além da dor


 Olivia de Cássia  Cerqueira



O sol escaldante do Nordeste do Brasil, nas grotas do engenho da Barriguda, no Cafuxi, Amolar, Baixa Seca, Jitirana e proximidades de União dos Palmares, nos anos 30; 40, 50, 60, 70 do século XX, não impedia que os trabalhadores rurais fossem para a lida do campo, submetidos ao contato com animais e plantas que podiam dar origem a doenças; uso indiscriminado de defensivos agrícolas; condições primitivas de vida; sem higiene ou saúde e educação, sem equipamentos de proteção, entre outros problemas.

Muitos eventos marcaram essas décadas no Brasil, entre eles: a extinção da República Oligárquica ou “República Velha”; a política do café com leite e o coronelismo. A criação da Aliança Liberal, que incluía os governos de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba (Anos 30*). Os trabalhadores, também na década de 30, iam para a lida diária, em regime semelhante ao de escravos essas práticas perduraram por muitas décadas.

 

E foi nesse ambiente que viveram Salomão Celestino e Carmem Celestino, que já tinham dez filhos, a maioria de mulheres. Carmem estava grávida e teve complicações na gravidez: estava de nove meses e o casal solicitou formalmente ao dono da fazenda, Sr. Israel, e à sua esposa, Sra. Guilhermina, para serem padrinhos da criança, costume adotado por pessoas mais simples na época.

Sentindo as dores do parto no meio do mato, Carmem avisou a Salomão que era chegada a hora de o bebê nascer. Ele correu para chamar dona Zefa, a parteira da região, e foram para o rancho onde viviam. Mas assim que pariu uma menina, Carmem faleceu: não resistiu às dificuldades do parto, Salomão chamou a menina de Amaralinda, atendendo um desejo da esposa, que dizia, se a criança fosse mulher daria esse nome e se fosse um cabra macho seria Amaro.

Com tantas dificuldades para criar os filhos e tendo os padrinhos e donos da fazenda insistido para criarem a menina, Salomão cedeu Amaralinda, objetivando que vivesse com mais conforto. Os fazendeiros já tinham seis filhos: dois homens e quatro mulheres, que ficaram enciumados com a nova irmã e passaram a hostilizá-la.

Com o passar do tempo, a menina passou a ser tratada como se fosse escrava da fazenda: lavando roupas no rio, com trouxa de roupa na cabeça, num sol escaldante do Nordeste, além de cuidar de toda a casa grande; apanhar bastante de Guilhermina e dos demais ocupantes da casa grande. José Vaqueiro trabalhava próximo da família e percebeu os maus tratos que Amaralinda sofria. Observando-a de longe, encantou-se pela cabrocha, que foi crescendo com toda mágoa e sofrimento, dos pais adotivos e familiares.

Os maus tratos continuavam e Israel vigiava para não falar com José, pois o namoro continuava as escondidas e Amaralinda apanhava daqueles que  Salomão julgava que melhorariam sua vida.

Depois de tentativas, sem resultado, o vaqueiro resolveu falar com Israel sobre o namoro, e o pai adotivo de Amaralinda ficou irritado, castigando a menina, para não colocar a cabeça na porta da casa, quando chegasse alguém.

 Guilhermina, por sua vez, aproveitou a oportunidade para espancar ainda mais a moça.  Como se não quisesse se desfazer da “faz tudo”, descarregou toda a sua raiva, de uma forma que José saiu de perto para não piorar a situação da amada.

O sol ia baixando, e nuvens pesadas anunciavam chuva. E choveu cântaros, parecendo que não parava mais. Sofrendo muito e passado algum tempo, Amaralinda se viu grávida e pensava como iria ser, quando o padrinho e pai de criação descobrisse a gravidez. Se preocupava mais com a reação dele do que com a de Salomão, seu pai biológico.

Sabendo da situação de Amaralinda, Israel expulsou a menina de casa. Diante disso, Zé Vaqueiro fez uma última tentativa, pedindo Amaralina em casamento, no que Israel respondeu com arrogância: “O máximo que vocês podem fazer é se amigar.

E o que você vai ser aqui é meu trabalhador, na palha da cana”. Nesse instante, Israel jogou a braça* aos pés de José e ele mandou de volta, dizendo: “morro na ponta do boi; mas não vou cortar cana para homem nenhum. Minha sina é ser vaqueiro”.

Revoltada com o pai adotivo, Amaralinda também foi proibida de passar nas terras da fazenda de Israel; desviava o trajeto, quando precisava circular por perto dali. E assim passou a viver Amaralinda, até que chegou a hora do parir.

Vivia numa choça coberta de palha, cedida por um morador da região. Não tinha nada para a criança, muito menos móveis ou eletrodomésticos e outros objetos para si. O que tinha em casa era um pouco de colorau, um pingo de sal e outro de farinha.

Para matar a fome, ela improvisou uma vara de pescar e foi para a beira de um pequeno riacho, tentar pegar algum peixe para matar a fome. Quando foi saindo do local, as dores começaram e pensou que era chegada a hora de o bebê vir ao mundo”. Ela estava só.

As dores do parto a atingiam em cheio. Agoniada, ela olhou para um lado e outro, inexperiente com a situação. Pensou em colocar o orgulho de lado e pedir misericórdia na fazenda de Israel, mas parou um pouco e voltou para casa.

No outro dia, as dores voltaram mais fortes e aquela menina se deitou em baixo de uma mangueira para descansar um pouco. Foi quando iam passando dois trabalhadores e perguntaram o que ela estava sentindo e resolveram avisar na fazenda de Israel.

Uma das mulheres da casa mandou providenciar um caminhão, para encaminhar Amaralinda à maternidade de União dos Palmares, mas da mesma forma que o caso era mais grave, enviaram a gestante para Maceió e a deixaram na Santa Mônica, como se fosse indigente.

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Agência Senado (*)

“Braça é uma antiga medida de comprimento equivalente a 2,20 metros linearmente.  Apesar de antiga, atualmente ainda é usada e compreendida por muitos trabalhadores rurais e outras pessoas envolvidas com o meio rural.  njunto de 3 000 braças se dá o nome de légua”. **(*)

 (*) https://pt.wikipedia.org/wiki/Bra%C3%A7a -

 

 

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