Olivia de Cássia Cerqueira
Lá fora os bem-te-vis e outros pássaros faziam
a festa, animados. Era primavera, mas no Nordeste do Brasil já era verão; a
temperatura fervia, deixando os dias mais longos e as noites curtas. Na Rua da
Ponte, a rotina não mudava para Maria Rosa e todos os dias ela cumpria o mesmo
ritual. Pensativa, ela sonhava com uma vida melhor para si e para os filhos. Em
não trabalhar tanto para ter o sustento da família.
Às vezes, pensava na acomodação do marido, que
era muito devagar, quase irresponsável. Ela estava perto da idade da
aposentadoria e cansada de tanto trabalho. Havia dias em que acordava e pensava
que não ia dar conta do recado. Sentia algumas dores no corpo, mas agradecia a
Deus pela vida que tinha e procurava ter pensamentos positivos, o que a ajudava
nas dificuldades diárias.
As filhas mais novas, Maria José e Maria
Quitéria, começaram a preocupar, quando vieram os primeiros namorados. Maria
José estudava na Escola Rocha Cavalcanti, construída na segunda década do
século XX, inaugurada em 1928, se não me falha a memória, e foi a primeira
escola oficial da cidade, ainda hoje em atividade.
Nas paredes das salas: mapas, desenhos em cartolina e janelas de
madeira divididas em duas partes. O pátio, ainda sem piso e uma grande árvore
no meio, servia para as brincadeiras das crianças na hora do recreio. Nas
cadeiras ou carteiras para os alunos cabiam duas pessoas. As salas eram
abertas, com entradas arqueadas, dando para ver a sala vizinha e do lado; a
professora chamava-se Josefa da Conceição, que era alta e forte; ela vestia
luto carregado e permanente pelo marido e pelo filho, mortos em jum acidente
automobilístico; luto pela vida de acontecimentos tristes. Mas ela enfrentava
tudo com muita dignidade.
Na escola, Maria José conheceu aquele que
viria a ser o seu “príncipe encantado”, Antônio Marcelo, até que ele virasse um
“sapo”. Todos os dias, os namorados saiam juntos do Rocha Cavalcanti e faziam o
percurso até a Rua da Ponte, pela ladeira grande, próxima à Rua da Cachoeira,
que era de barro e sem saneamento durante muitos anos.
Antônio Marcelo também foi morar na Rua da
Ponte. Sua família era natural de Sergipe, de Canindé do São Francisco, próximo
ao município de Piranhas, em Alagoas, e onde Lampião, o rei do cangaço, foi
morto e teve a cabeça decepada. Com o tempo de namoro, Maria José começou a
perceber alguns comportamentos estranhos no namorado e se questionava se era
aquilo que queria para sua vida. Ele se mostrava machista, controlador e
dominador; não queria que a namorada saísse sem que fosse em sua companhia e
ignorava tudo o que não fizesse parte do seu mundo arcaico e atrasado. Mas
Maria José acreditava que ele mudaria com o tempo. Tentava argumentar, mas era
sempre contestada e recriminada por ele.
Com tudo isso, Maria Rosa se preocupava com o
futuro da filha, como toda mãe, pois a achava ainda muito nova para pensar em
namoros sérios. Dava conselhos e mostrava seu exemplo de vida, que saiu de casa
sem a aprovação dos pais, Jacira e Manoelito, descendentes de pessoas
escravizadas e sem estudos, mas com os olhos abertos para o mundo. O povo
preto, independentemente de ser afortunado, ou não, ao longo dos séculos,
sempre teve uma luta maior, porque Jacira e Manoelito, pais de Maria Rosa,
cotidianamente, alertavam os filhos que tinham que saber entrar e sair dos
lugares, pois a situação para o negro sempre foi mais difícil e seja lá o que
fizesse era visto com censura.
Além do problema da idade, Maria José e
Antônio Marcelo não tinham como se sustentar sozinhos. Ele conseguiu emprego de
motorista de caminhão, que transportava cana para uma usina de cana de açúcar,
mas ganhava muito pouco, e Maria Rosa temia pela filha, pois a situação ia “sobrar”
para ela, que já “comia um dobrado”, para colocar comida na mesa, com a ajuda
apenas da filha mais velha, que já se sentia explorada e queria sair de casa.
Maria Rosa pensava que não sabia mais como
convencer os filhos sobre o rumo que deviam tomar, pois se sentia limitada e
tinha apenas os conhecimentos que a vida lhe deu. Os filhos não davam ouvidos
para o que ela dizia ou pensava. Na adolescência, a gente pensa que sabe tudo.
Em uma briga de casal, motivada pela saída de Maria José com as amigas, quando
Antônio Marcelo soube, agrediu a namorada proferindo palavras de baixo calão e
batendo nela com um tapa no rosto, e Maria José terminou o relacionamento abusivo.
Mas, depois da raiva passada, ele insistiu para voltar, prometendo mudar de
comportamento e Maria José o perdoou, colocando sua vida em perigo.