segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Olivia de Cássia Cerqueira 



Lá fora os bem-te-vis e outros pássaros faziam a festa, animados. Era primavera, mas no Nordeste do Brasil já era verão; a temperatura fervia, deixando os dias mais longos e as noites curtas. Na Rua da Ponte, a rotina não mudava para Maria Rosa e todos os dias ela cumpria o mesmo ritual. Pensativa, ela sonhava com uma vida melhor para si e para os filhos. Em não trabalhar tanto para ter o sustento da família.

Às vezes, pensava na acomodação do marido, que era muito devagar, quase irresponsável. Ela estava perto da idade da aposentadoria e cansada de tanto trabalho. Havia dias em que acordava e pensava que não ia dar conta do recado. Sentia algumas dores no corpo, mas agradecia a Deus pela vida que tinha e procurava ter pensamentos positivos, o que a ajudava nas dificuldades diárias.

As filhas mais novas, Maria José e Maria Quitéria, começaram a preocupar, quando vieram os primeiros namorados. Maria José estudava na Escola Rocha Cavalcanti, construída na segunda década do século XX, inaugurada em 1928, se não me falha a memória, e foi a primeira escola oficial da cidade, ainda hoje em atividade.

Nas paredes das salas:  mapas, desenhos em cartolina e janelas de madeira divididas em duas partes. O pátio, ainda sem piso e uma grande árvore no meio, servia para as brincadeiras das crianças na hora do recreio. Nas cadeiras ou carteiras para os alunos cabiam duas pessoas. As salas eram abertas, com entradas arqueadas, dando para ver a sala vizinha e do lado; a professora chamava-se Josefa da Conceição, que era alta e forte; ela vestia luto carregado e permanente pelo marido e pelo filho, mortos em jum acidente automobilístico; luto pela vida de acontecimentos tristes. Mas ela enfrentava tudo com muita dignidade.

Na escola, Maria José conheceu aquele que viria a ser o seu “príncipe encantado”, Antônio Marcelo, até que ele virasse um “sapo”. Todos os dias, os namorados saiam juntos do Rocha Cavalcanti e faziam o percurso até a Rua da Ponte, pela ladeira grande, próxima à Rua da Cachoeira, que era de barro e sem saneamento durante muitos anos. 

Antônio Marcelo também foi morar na Rua da Ponte. Sua família era natural de Sergipe, de Canindé do São Francisco, próximo ao município de Piranhas, em Alagoas, e onde Lampião, o rei do cangaço, foi morto e teve a cabeça decepada. Com o tempo de namoro, Maria José começou a perceber alguns comportamentos estranhos no namorado e se questionava se era aquilo que queria para sua vida. Ele se mostrava machista, controlador e dominador; não queria que a namorada saísse sem que fosse em sua companhia e ignorava tudo o que não fizesse parte do seu mundo arcaico e atrasado. Mas Maria José acreditava que ele mudaria com o tempo. Tentava argumentar, mas era sempre contestada e recriminada por ele.

Com tudo isso, Maria Rosa se preocupava com o futuro da filha, como toda mãe, pois a achava ainda muito nova para pensar em namoros sérios. Dava conselhos e mostrava seu exemplo de vida, que saiu de casa sem a aprovação dos pais, Jacira e Manoelito, descendentes de pessoas escravizadas e sem estudos, mas com os olhos abertos para o mundo. O povo preto, independentemente de ser afortunado, ou não, ao longo dos séculos, sempre teve uma luta maior, porque Jacira e Manoelito, pais de Maria Rosa, cotidianamente, alertavam os filhos que tinham que saber entrar e sair dos lugares, pois a situação para o negro sempre foi mais difícil e seja lá o que fizesse era visto com censura.

Além do problema da idade, Maria José e Antônio Marcelo não tinham como se sustentar sozinhos. Ele conseguiu emprego de motorista de caminhão, que transportava cana para uma usina de cana de açúcar, mas ganhava muito pouco, e Maria Rosa temia pela filha, pois a situação ia “sobrar” para ela, que já “comia um dobrado”, para colocar comida na mesa, com a ajuda apenas da filha mais velha, que já se sentia explorada e queria sair de casa.

Maria Rosa pensava que não sabia mais como convencer os filhos sobre o rumo que deviam tomar, pois se sentia limitada e tinha apenas os conhecimentos que a vida lhe deu. Os filhos não davam ouvidos para o que ela dizia ou pensava. Na adolescência, a gente pensa que sabe tudo. Em uma briga de casal, motivada pela saída de Maria José com as amigas, quando Antônio Marcelo soube, agrediu a namorada proferindo palavras de baixo calão e batendo nela com um tapa no rosto, e Maria José terminou o relacionamento abusivo. Mas, depois da raiva passada, ele insistiu para voltar, prometendo mudar de comportamento e Maria José o perdoou, colocando sua vida em perigo.

União dos Palmares




Olivia de Cássia  Cerqueira


A cidade de União dos Palmares, em Alagoas, foi fundada em 13 de outubro de 1831. A região onde hoje se localiza a cidade foi o local do Quilombo dos Palmares, o maior quilombo da América Latina durante o período colonial. Conta-se que o quilombo ocupou uma área extensa da cidade, e que os primeiros indícios da presença humana na região datam do final do século XVI, quando negros fugitivos de engenhos de açúcar chegaram à Serra da Barriga.

Há várias versões sobre a figura de Zumbi, mas prefiro acreditar na versão do povo preto, que trata Zumbi como verdadeiro herói, do que na versão dos opressores. Para a maioria do povo afro, dos movimentos sociais e do movimento negro mundial, incontestavelmente, a figura do líder negro Zumbi dos Palmares é o principal símbolo de resistência e liberdade do país, junto com Dandara e tantos reis e rainhas que vieram obrigados ao Brasil, em situação degradante nos porões dos navios negreiros.

União dos Palmares também é terra do poeta, médico, escritor e fotógrafo Jorge de Lima; de Carlos Povina Cavalcanti; Maria Mariá; Silvio Sarmento e tantos outros personagens que vivem no anonimato. Mas a nossa história não é sobre o quilombo e nem sobre Zumbi e nenhum desses personagens.

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Além da dor


 Olivia de Cássia  Cerqueira



O sol escaldante do Nordeste do Brasil, nas grotas do engenho da Barriguda, no Cafuxi, Amolar, Baixa Seca, Jitirana e proximidades de União dos Palmares, nos anos 30; 40, 50, 60, 70 do século XX, não impedia que os trabalhadores rurais fossem para a lida do campo, submetidos ao contato com animais e plantas que podiam dar origem a doenças; uso indiscriminado de defensivos agrícolas; condições primitivas de vida; sem higiene ou saúde e educação, sem equipamentos de proteção, entre outros problemas.

Muitos eventos marcaram essas décadas no Brasil, entre eles: a extinção da República Oligárquica ou “República Velha”; a política do café com leite e o coronelismo. A criação da Aliança Liberal, que incluía os governos de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba (Anos 30*). Os trabalhadores, também na década de 30, iam para a lida diária, em regime semelhante ao de escravos essas práticas perduraram por muitas décadas.

 

E foi nesse ambiente que viveram Salomão Celestino e Carmem Celestino, que já tinham dez filhos, a maioria de mulheres. Carmem estava grávida e teve complicações na gravidez: estava de nove meses e o casal solicitou formalmente ao dono da fazenda, Sr. Israel, e à sua esposa, Sra. Guilhermina, para serem padrinhos da criança, costume adotado por pessoas mais simples na época.

Sentindo as dores do parto no meio do mato, Carmem avisou a Salomão que era chegada a hora de o bebê nascer. Ele correu para chamar dona Zefa, a parteira da região, e foram para o rancho onde viviam. Mas assim que pariu uma menina, Carmem faleceu: não resistiu às dificuldades do parto, Salomão chamou a menina de Amaralinda, atendendo um desejo da esposa, que dizia, se a criança fosse mulher daria esse nome e se fosse um cabra macho seria Amaro.

Com tantas dificuldades para criar os filhos e tendo os padrinhos e donos da fazenda insistido para criarem a menina, Salomão cedeu Amaralinda, objetivando que vivesse com mais conforto. Os fazendeiros já tinham seis filhos: dois homens e quatro mulheres, que ficaram enciumados com a nova irmã e passaram a hostilizá-la.

Com o passar do tempo, a menina passou a ser tratada como se fosse escrava da fazenda: lavando roupas no rio, com trouxa de roupa na cabeça, num sol escaldante do Nordeste, além de cuidar de toda a casa grande; apanhar bastante de Guilhermina e dos demais ocupantes da casa grande. José Vaqueiro trabalhava próximo da família e percebeu os maus tratos que Amaralinda sofria. Observando-a de longe, encantou-se pela cabrocha, que foi crescendo com toda mágoa e sofrimento, dos pais adotivos e familiares.

Os maus tratos continuavam e Israel vigiava para não falar com José, pois o namoro continuava as escondidas e Amaralinda apanhava daqueles que  Salomão julgava que melhorariam sua vida.

Depois de tentativas, sem resultado, o vaqueiro resolveu falar com Israel sobre o namoro, e o pai adotivo de Amaralinda ficou irritado, castigando a menina, para não colocar a cabeça na porta da casa, quando chegasse alguém.

 Guilhermina, por sua vez, aproveitou a oportunidade para espancar ainda mais a moça.  Como se não quisesse se desfazer da “faz tudo”, descarregou toda a sua raiva, de uma forma que José saiu de perto para não piorar a situação da amada.

O sol ia baixando, e nuvens pesadas anunciavam chuva. E choveu cântaros, parecendo que não parava mais. Sofrendo muito e passado algum tempo, Amaralinda se viu grávida e pensava como iria ser, quando o padrinho e pai de criação descobrisse a gravidez. Se preocupava mais com a reação dele do que com a de Salomão, seu pai biológico.

Sabendo da situação de Amaralinda, Israel expulsou a menina de casa. Diante disso, Zé Vaqueiro fez uma última tentativa, pedindo Amaralina em casamento, no que Israel respondeu com arrogância: “O máximo que vocês podem fazer é se amigar.

E o que você vai ser aqui é meu trabalhador, na palha da cana”. Nesse instante, Israel jogou a braça* aos pés de José e ele mandou de volta, dizendo: “morro na ponta do boi; mas não vou cortar cana para homem nenhum. Minha sina é ser vaqueiro”.

Revoltada com o pai adotivo, Amaralinda também foi proibida de passar nas terras da fazenda de Israel; desviava o trajeto, quando precisava circular por perto dali. E assim passou a viver Amaralinda, até que chegou a hora do parir.

Vivia numa choça coberta de palha, cedida por um morador da região. Não tinha nada para a criança, muito menos móveis ou eletrodomésticos e outros objetos para si. O que tinha em casa era um pouco de colorau, um pingo de sal e outro de farinha.

Para matar a fome, ela improvisou uma vara de pescar e foi para a beira de um pequeno riacho, tentar pegar algum peixe para matar a fome. Quando foi saindo do local, as dores começaram e pensou que era chegada a hora de o bebê vir ao mundo”. Ela estava só.

As dores do parto a atingiam em cheio. Agoniada, ela olhou para um lado e outro, inexperiente com a situação. Pensou em colocar o orgulho de lado e pedir misericórdia na fazenda de Israel, mas parou um pouco e voltou para casa.

No outro dia, as dores voltaram mais fortes e aquela menina se deitou em baixo de uma mangueira para descansar um pouco. Foi quando iam passando dois trabalhadores e perguntaram o que ela estava sentindo e resolveram avisar na fazenda de Israel.

Uma das mulheres da casa mandou providenciar um caminhão, para encaminhar Amaralinda à maternidade de União dos Palmares, mas da mesma forma que o caso era mais grave, enviaram a gestante para Maceió e a deixaram na Santa Mônica, como se fosse indigente.

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Agência Senado (*)

“Braça é uma antiga medida de comprimento equivalente a 2,20 metros linearmente.  Apesar de antiga, atualmente ainda é usada e compreendida por muitos trabalhadores rurais e outras pessoas envolvidas com o meio rural.  njunto de 3 000 braças se dá o nome de légua”. **(*)

 (*) https://pt.wikipedia.org/wiki/Bra%C3%A7a -

 

 

Olivia de Cássia Cerqueira  Lá fora os bem-te-vis e outros pássaros faziam a festa, animados. Era primavera, mas no Nordeste do Brasil já er...